terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Um parceiro para dançar na vida

Pelas manhãs, suco de laranja, um pão, às vezes dois. Gostava de tomar o café da manhã com calma, degustando a comida, que nem era tanta, e, principalmente, o raiar do dia. Apreciava aquele momento: o sol iluminando o dia, despertando pessoas, cores. Acordando a vida. Enchia-se de graça, espreguiçava-se.
Trocava de roupa, verificava se tinha desligado tudo, se as portas e janelas estavam devidamente fechadas. Acariciava o cachorro ao colocar mais água na sua tigela. Pegava a pasta preta e a bolsa. Checava pela quarta vez, talvez quinta, a bolsa. Tinha tudo o que precisava ali? Protetor solar, escova de cabelo e de dente, creme para quando as mãos ficassem ásperas, pasta de dente, perfume, óculos de sol, de grau, caneta, a carteira, os documentos, chaves, além de pilhas de papéis – alguns eram contas, outros eram pensamentos que lhe surgiam e anotava e os demais eram números de telefones. Tudo estava na bolsa.
Jurava para si mesma que não carregaria tanta coisa assim, mas não conseguia se livrar daqueles utensílios, nem dos papéis. Esqueceu da bolsa. Mirou o relógio de parede que, recentemente, pendurou na sala. Era a hora de partir. Era para isso que tinha colocado o relógio ali, para não se atrasar. Depois que ficou sozinha, os atrasos se tornaram constantes. Então, resolveu pendurar o marcador de tempo que tanto lutou para que não fosse pendurado. Achava-o feio, mas agora ele até que era bonitinho. O importante era que não se atrasasse.
Foi para o trabalho. Lá as horas passavam rapidamente. Entre os barulhos do teclado, telefonemas, ordens, pedidos, reuniões. Risos. A turma do administrativo era divertida. Reuniam-se às quintas-feiras, depois do expediente, para tomar chopp e conversar sobre sexo. Falavam sobre outros assuntos também, mas as sacanagens prevaleciam. Até as esposas e esposos entravam na brincadeira, revelando fantasias.
Voltava para a casa cansada. Meio tonta por causa da cerveja. Abria o portão, colocava o carro na garagem já chamando pelo cachorro que aparecia abanando o rabo. Ao abrir a porta, o eco lhe cumprimentava. Escutava alguns barulhinhos típicos, como do motor da geladeira e do aquário. Tinha esquecido de alimentar o peixe. Sempre esquecia. Não tinha paciência para animais aquáticos, era a desculpa que dava quando o dono do peixe a cobrava. Sentia falta dessa cobrança.
Respirou fundo. Quis dançar. Ligou a música. Podia dançar uma valsa, um tango, forró, até salsa. Se fosse há oito meses, podia dançar mesmo. Ele, assim como ela, era apaixonado por dança de salão. Os dois transformavam a pequena sala em um grande salão de festas, passavam horas a procura do movimento que melhor rimasse com a melodia que escutavam. O cachorro e o peixe eram seus expectadores. Desligou a música. Antes que seus olhos ficassem marejados, decidiu que o seu luto terminaria ali. Amanhã iria dançar. Procuraria um par.

Laços de Família

- Mãe, minha pinta caiu. Isso é bom ou ruim?
- O quê?
- É a pinta que eu tinha na barriga que junto com as outras formavam as três marias...agora não mais...Isso é bom ou ruim?
Enquanto minha mãe pensa na resposta, meu irmão atravessa, definindo o que é:
- Isso é nojento.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Cena de verão

Boia num braço, bolsa no outro e a mão esquerda entrelaçada com a do meu sobrinho. Vamos à piscina, é só atravessar a rua. Enquanto percorremos o clube rumo à água, ele faz mil planos, fala do mergulho que vai dar, dos pulos, da primeira vez em cima da boia.
- Vem Enzo, pula. Eu te pego.
Ele observa aquela imensidão de água, que nem é tanta, pois estamos na piscina de criança. Olha com receio. Demora mais um pouco. As crianças estão que nem formigas ao redor da boia que ele não quer, teve medo de subir e cair. Ele coça a cabeça, pensa mais, diz que tá com medo. Eu monto na boia. A ideia era dar segurança. Deu certo.
Tibum. Ele pulou na piscina e quer subir na boia. Eu garanto que ele não vai cair.
- Me segula tia.
Ele sobe na boia. Durante uns dois segundos nos exibimos para o resto das crianças. Os olhinhos delas brilham até que... caldo. Caldo na piscina rala, para mim. Resgato meu sobrinho. Ao levantá-lo,um coro de risada infantil. O Enzo ri também. Quer mais boia, mais tombos, mais água.
- É velao tia, é velao.
Ele sabe que adoro o verão.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Fácil, fácil.

Sábado
- Tia, voxe tem namolado?
- Não tenho, não.
- Por que voxe não namola o meu pai?
Antes que eu pudesse, ele conclui o óbvio.
- Porque ele já tem namolada, né.
- É, e ele é meu irmão também. Se você quiser pode arruma um namorado pra mim.
- Huuum. Pensa um pouco.
- Arruma um bem bonito.
- O Ben 10, ué.
...
Segunda-feira
- Tia, coloca o vídeo Buguesinha do Seu Jorge pra mim?
A música Burguesinha que na verdade é Mina do Condomínio. Coloquei a música.
- Aii Enzo, Seu Jorge é lindo...
- Você quelia dá um beijo nele?
- Eu queria heim.
Meu sobrinho, aos três anos, é tradicionalista. Antes de beijar, tem que casar.
- Então casa. Pega ele no computador e faz casamento.
- Mas como que eu faço isso, você só me arruma caras difíceis...
- Ué, você pega, bate no computador, quebla, e pega ele pra voxe. Daí, daí, daí...voxe casa.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A quarta geração dos Antunes

A falência da família foi chegando sorrateiramente. Começou com a dispensa de Maria, que há mais de uma década cuidava das crianças, da casa, dos patrões. Algumas lágrimas escorreram dos olhos dos meninos, outras do rosto de Maria. A mãe, após a demissão da doméstica, explicou aos garotos que a partir daquele momento teriam que ajudá-la a lavar louça, varrer a os quartos, limpar o banheiro.
Entenderam o recado e compreenderam que a ajuda deles era necessária, afinal a mãe trabalhava fora, em duas escolas. O pai também entraria nessa dança. O marido encarou a faxina como outra afazer qualquer, pois teve infância modesta antes de ser empresário bem sucedido, sabia como fazer os serviços. Foi o mais velho de seis irmãos, cozinhava bem e até passava roupa adequadamente. Doeu nele ver os filhos, que nunca tinham lavado um prato, lavar louça do café da manhã até a janta.
Depois da empregada, cortaram aquilo que consideravam, naquelas circunstâncias, luxo: clube, aulas de judô e música, roupas todo mês, inglês particular. O menino de 14 anos, mais velho, mesmo sentido, tentava compreender. O de 10 anos, revoltado, tirava notas vermelhas, brigava na escola. O de 5 anos no começo chorava, fazia manha, mas depois esquecia.
Os pais viviam com a testa franzida, faziam contas para tentar manter a escola particular e a casa, que tinha um tamanho considerável. Cinco quartos, uma cozinha enorme, sala de jantar, de estar, de TV. Além do espaço da churrasqueira, tinham um quintal com casa na árvore, escorregador, balanço. Era muita grama para cortar, ou seja, mais um gasto.
Venderam a casa. Tiveram que dar os cachorros. Foram morar em apartamento. Os meninos continuaram na escola particular. Para tanto, deixaram de trocar de carro todo ano, não viajavam mais para a praia, não viam mais os parentes do outro estado, não compravam mais os últimos aparelhos eletrônicos do mercado. A fonte tinha secado demais. Mesmo assim, o mais velho dos filhos foi estudar fora, tinha passado em universidade pública.
Durante os cinco anos da faculdade, o garoto mudou, a família mudou. O irmão do meio ficou ‘grávido’. O apartamento pequeno onde residiam recebeu mais dois moradores: a cunhada e o sobrinho que logo chegaria. O irmão mais novo foi terminar os estudos em escola pública. Os pais continuavam arregaçando as mangas, a procura de uma saída que nunca encontravam.
Cresceu, formou-se e foi trabalhar. Como a profissão que escolhera era pouco rentável, tinha medo de não conseguir nada. Tinha medo de não poder ajudar a mãe, o pai, o caçula, o irmão que casou. Escutava músicas para abafar esse medo. Corria para que a ansiedade cessasse. Entretanto, temia não chegar a lugar algum.
Os anos passavam e o sonho de dar tudo aquilo que teve um dia, como retribuição, ficava distante. A mãe, mesmo aposentada, trabalhava. O pai também. Talvez nunca pudessem parar de trabalhar. Essa incerteza o apavorava e a tristeza no olhar dos pais lhe atingia. Lembrava da infância, da adolescência. Da casa grande, do cheiro dos carros novos, de como era cômodo ter quem fizesse o serviço de casa. Queria poder voltar no tempo e interromper a falência. Desejava, de alguma forma, impedir que o futuro fosse aquele presente.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Lari, pare de assistir House!

A pinta que habita meu braço direito, mais precisamente abaixo do meu punho, está aumentando de tamanho. Tive até a impressão de que ela mudou de lugar, está um pouco mais à esquerda do que o habitual.
Passei a observá-la com mais frequência depois de um episódio de House, no qual uma mulher acabou morrendo devido ao câncer de pele. Não só ao câncer de pele, mas...enfim.
Tudo bem, admito que eu tenho que parar de assistir a série. Porque me impressiono com os casos, com as inúmeras doenças que aparecem no seriado. E as cenas de seringa, agulhas e afins me deixam tensa.
Entretanto, me divirto com as picuinhas do médico mal humorado, das respostas que ele dá à sua equipe, aos seus pacientes. Sou apaixonada pelo Dr. House, acho o máximo sua filosofia de vida. Para mim, ele é irresistível. Viciante.
Como sou uma convicta paranóica-neurótica-encanada, deveria procurar ajudar para conter tal vício. Alguém indica outra série?

PS: Se for drama, melhor. Adoro um drama. Detesto musicais e ficção científica.


segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O amanhã tem que chegar

Eu estou deitada na cama, imóvel. Sono profundo. Consigo me ver mesmo de olhos fechados, pois me encontro fora de meu corpo. Não movo mãos, pés. Nada. A força que faço para me movimentar é tamanha, mesmo assim permaneço estática. Sensação de impotência ao quadrado aliada ao desespero de quem se enxerga fora de seu próprio corpo.
Me disseram que isso é pressão baixa. Que essa coisa de eu achar que estou fora de mim mesma é confusão da minha mente. Talvez. Mas nessas horas eu me sinto demasiadamente frágil, oscilando entre a vida e a morte. Como se eu estivesse pendurada entre dois mundos, duas realidades. É nesse sono profundo, no qual meu corpo e minha mente não se conectam, que eu acho que a morte me visita. Visitinha chata, incomoda.
Quando retomo o controle do meu corpo, a minha garganta está seca. A respiração é lenta e profunda – como se eu voltasse à superfície depois de um longo tempo debaixo da água. Meus pensamentos ficam oblíquos até eu ter certeza de que tudo não passou de um presságio sem fundamento. Porque eu não quero ir sem me despedir, sem tomar café da manhã, sem deixar o sol bater no rosto. Quero dar meus passos. Tropeçar. Desprender o nó!

domingo, 5 de dezembro de 2010

O bom partido

Meu mundo girava quando meus lábios encontravam com os seus. O giro era certeiro. É indescritível a sensação que me causava. Depois do giro, meu mundo parava. Os movimentos congelavam. Eu via cheiros, tocava as palavras, cheirava cores e escutava o silêncio. Intensidade dobrada. Minha sensibilidade ao cubo, quiçá mais.
Achava-me com sorte, pois entre tantas bocas, tantas paixões, tantas vezes e esquinas, eu tinha encontrado você. Não queria espaço nos nossos abraços. Quis você pertinho, do meu lado, em cima de mim. Dentro de mim. Todos os dias. Pensei em fazer o pedido, porque você era pra casar. Engoli a pergunta e deixei amanhecer. Pela manhã, você já não parecia ser tão bom partido...

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A história na cara


Quem a encontrava pelas ruas de manhã, mesmo sem a conhecer, sabia da sua viuvez. Acordava cedo para caminhar, mas antes de cuidar da saúde, cuidava do túmulo do marido. Levava flores para o falecido. De vez em quando chorava, porque dava saudade, porque dava solidão.
Daí lembrava da idade, dos anos que viveram juntos, dos filhos, da casa que compraram, do sítio que venderam, dos dois pela primeira vez na praia. Da vida que construíram. As dores passavam. E sentia até orgulho da expressão máxima de sua velhice: as rugas, que escancaravam a sua história.
Porque as rugas, embora assustassem os mais jovens, perto da perda de movimentos, dos cabelos cada vez mais brancos - que ela mesma pintava - e minguados, da memória que insistia em falhar, não eram nada. Nadinha. Pior mesmo era ver os seios tocando seu umbigo. Era difícil, para não dizer impossível, ser sensual na velhice. E, claro, sentia falta de ser mais bonita. Mas essa vontade de ficar mais bonita passava quando ela abria a gaveta de seu criado mudo.
Lá estavam guardadas as fotos, as cartas, bilhetes e cartões postais dos locais que visitou. Tinha quinquilharia também, presentes que ganhou dos amigos. Ao abrir a gaveta, o perfume do seu passado infestava o ambiente, levando-a para uma época boa. Que hoje ela sabe que era boa. Cansou de lembrar e passou a mão no rosto para conter a lágrima que cairia. O movimento a reportou para o presente. Seus dedos sentiram.
As rugas estavam ali, à mostra, impregnadas na sua face. Viver de desgosto nunca foi seu objetivo. Nem sina. Fechou a gaveta e foi para a feira, sentir o cheiro das frutas e verduras. O colorido das maçãs, bananas, pêra, cenoura, pimentão, tomate, alface e berinjela indicava que mesmo com rugas a vida tinha cores. Sabores também. Receberia os filhos, netos e bisnetos para a janta.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Vai e vem.

Uma palavra simples e juvenil caracteriza o relacionamento deles: ioiô. Perderam as contas de quantas vezes tinham terminado e depois retomado o namoro, se é que podiam chamar aquilo de namoro. O vai e volta era tão frequente que mesmo separados sabiam que estavam juntos e mesmo juntos sabiam que estavam separados. Juntos ou separados, jamais estiveram no mesmo ritmo
Não eram harmônicos. Quando ela estava bem, ele não estava e vice-versa. Ela queria, ele não. Ele queria, ela não. Desconheciam a sintonia e sofriam com essa falta de rima. Mas, como juravam que o que sentiam era amor, insistiam. Empurravam a relação com a barriga.
Depois com a barriga e as mãos. Posteriormente, com a barriga, mãos, pés, pernas...Era preciso força para manter um relacionamento como o deles. Ambos tinham se tornado um vício um para o outro. Era difícil largar, abandonar aquilo que tinham criado e mantido há dois anos.
Algumas semanas eram amorzinhos. Dengos, chamegos. Bem me quer. Nos outros dias eram mal me quer. Brigavam feio, insultavam-se. Despediam-se. Curtiam outras bocas, outros corpos, outras brigas. Não demora e voltavam um para o outro. A saudade os deixava mais leves, o que favorecia a relação. Até acontecer alguma desavença.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Uma mola encolhida

Tem dias que a gente acorda se sentindo minúscula demais, sem graça demais, limitada demais. Nesses dias as horas demoram a passar e o embrulho no estômago parece que vai ser para sempre. Dá náuseas. O mal estar faz parecer que nada presta, que nada vale a pena.
Para onde vou? O que estou fazendo? Isso tem futuro? Eu mudo de vida? De estilo? De jeito? Por que eu sou assim? Qual é o problema? Existe solução? Mas eu fiz a escolha certa? Eu, você ou ele? Nenhum? Todos? Você? Ele? Eu? O que eu sinto, penso, quero? Se eu rezar adianta? Se eu fazer acontece? E se eu mandar tudo para aquele lugar?
Mandar tudo para aquele lugar de imediato, quando o cérebro não para de lhe fazer perguntas, parece ser a melhor opção. Então há uma sensação de alívio carregada de coragem. Que passa. Porque depois das inúmeras dúvidas sobre o que fazer e como viver, a massa encefálica lhe avisa que o melhor mesmo é esperar.
A sua parte racional afirma que a sensatez deve prevalecer. Não dá para mandar tudo à merda. Merda! E tudo fica cinza novamente. Então, você se reduz a ser aquela mola encolhida num cantinho de um quarto qualquer escuro e frio. Esperando um abraço, uma mão, uma luz, um mantra...

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Bendito torcicolo

Acordou com torcicolo. Tentou virar para o lado da mulher, para que ela apertasse o botão do despertador que não parava de tocar, mas não conseguiu. Gemeu de dor. A esposa, enfim, acordou. Preocupada dirigiu o olhar a ele, perguntando o que sentia. Apontou o pescoço, ela entendeu que era torcicolo.
Como era boa nessa coisa de massagem, buscou um de seus cremes. Pediu ao marido que sentasse e começou a massagear onde doía. O homem se sentiu estranho. Ambos se sentiram um pouco incomodados. Ela e ele estavam muito mais próximos do que o habitual. Há meses não se tocavam.
Enquanto a mulher o massageava, ele aproveitava o momento para sentir a pele dela. A mão que aliviava a dor do seu pescoço lhe libertava a alma, provocando seu corpo. Lembrou de quando se conheceram, das mãos que nunca se largavam, das bocas que não se desgrudavam. Do cheiro que exalavam. Não se beijavam mais. Por quê? Ele próprio se perguntava.
A esposa deslizava a mão no torcicolo dele, o movimento repetitivo lhe trazia recordações. De épocas em que tanto a mão dela quanto a dele se lambuzava de prazer. Não visitavam mais a parte íntima um do outro. Ela também buscava respostas para essa distancia.
Sentiu vontade de se envolver nas costas do marido, de roçar seus seios nela. Desistiu. O marido quis pegar-lhe de jeito, entrelaçar suas pernas à dela. Desistiu. Não sabiam mais fazer carícias. A massagem acabou. O marido rezou para amanhecer de novo com torcicolo. A esposa pediu um milagre, para que o torcicolo se estendesse ao corpo inteiro.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Balanço de final de ano

Um recorde jamais previsto. Um desejo atendido. Uma decisão a ser feita. Um caminho para seguir. Um livro para ser lançado. Uma foto para nunca esquecer. Uma dedicatória para eternidade. Uma mensagem que salvou meu dia. Um texto que salvou a minha vida. Uma pessoa para guardar no potinho.
Uma lição já decorada. Um clássico coração partido. Um novo amor para chamar de meu. Um show para embalar a nossa história. Uma briga, duas brigas, várias brigas. O ano do autorreconhecimento, de uma carência que não tem fim, de vontades que nunca cessam. Eu tenho um plano!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sem peso na consciência

Queria ser médico para salvar vidas. Seus planos mudaram. Seria médico para se dar bem na vida. Fez especialização em cirurgia plástica. Tem clínica própria, equipamentos de última geração. Três enfermeiras trabalham com ele. Tem secretária também, que é sua amante, assim como uma das enfermeiras. Vestir-se de branco é o seu charme. Além de mulheres, de branco tem mais prestígio. Atende no SUS também, porque uma graninha a mais é sempre bem vinda.
No público, o atendimento é diferenciado, em menos de cinco minutos examina os pacientes dando-lhes o diagnóstico. Com pressa, já que ganha por paciente - quanto mais melhor -, esqueceu de verificar os batimentos cardíacos do pedreiro que reclamava de dores no peito. Não viu as inflamações na pele da menina que dizia ter fortes dores de cabeça. E ao menino que vomitava sem parar indicou soro caseiro, pois devia ser virose.
Todos morreram. O pedreiro do coração,a menina de uma doença crônica e o menino de um vírus raro. A consciência não pesou. Perder paciente é rotina médica. Só ficava sem sono quando uma de suas clientes da clínica lhe dava cheques sem fundo.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fotograma Poético

O registro do cheiro doce de verão para lembrar do sabor da saudade que fica.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Relíquia

Conheci o Fabiano através da menina que morava comigo, lá em Guarapuava. Ele era de Iretama e treinava laço e tambor em Campo Mourão, no Parque de Exposições, local que a minha amiga frequentava. Eu estava no primeiro ano de Jornalismo e ele quase perdendo o curso de Veterinária. Tinha reprovado demais.

No dia em que nos conhecemos, eu ofereci suco de limão dizendo que era laranja. O que fez ele ter certeza de que de frutas, verduras, roça, eu não entendia absolutamente nada. Não bastasse a troca das frutas, fiz pipoca, a pedidos, na panela de pressão, que era a maior panela da casa. Tampei a panela de pressão e quase matei ele e a minha companheira de casa de susto.
A partir de então, ganhei um apelido, Relíquia. Pois, de acordo com ele, poucas mulheres tinham lhe arrancado tantas gargalhadas numa noite só. Porque além de engraçada, eu tinha uma maneira peculiar de contar as minhas histórias, de falar da minha família, de explicitar meus anseios. E ele gostava disso.
Considerei-o uma Relíquia também. Porque tem um coração bom, é incapaz de fazer maldades. Talvez, ele seja o homem mais bondoso e sincero que já conheci. Uma Relíquia mesmo, de sorriso largo, um dos mais bonitos que já vi. Desde então, ambos chamamos um ao outro de Relíquia.
Foi ele quem realizou um dos meus sonhos, o de pegar carona de caminhão. Ele fazia isso com frequência e disse que um dia me chamaria para ir junto. Chegou o dia e eu entrei em um estado de felicidade intenso. Avisei que iria para Campo Mourão de carona, matando a menina que morava comigo e o dono do meu prédio de preocupação.
Deu tudo certo, em menos de 10 minutos na BR,com um pedaço de papelão escrito Estudante Campo Mourão, estávamos dentro da boleia. Tivemos o maior papo com o motorista que nos deixou em Iretama, onde conheci sua família e provei do tempero de sua mãe. Fiquei para o almoço.
Depois, ele também veio para casa, onde conheceu minha família. Minha mãe o adorou, não tinha como não gostar dele. Carregava consigo a leveza e a rusticidade de quem morava na roça, fala firme, simples, coração mole. Uma Relíquia.
Passamos uns três anos nos visitando, tanto em Guarapuava quanto em Campo Mourão. Ele terminou a faculdade antes que eu e acabamos perdendo o contato. Revi-o ontem, no meio da rua, literalmente. Eu aguardava minha mãe, quando um carro desconhecido começou a buzinar e parou no meio da avenida. Era ele, que baixou o vidro, convidando-me para entrar.
Expliquei que esperava minha mãe, conversamos menos de três minutos. Deu tempo de quase nada, só de falar que estávamos bem. Os carros atrás começaram a buzinar, dentre eles, a minha mãe. Despedimo-nos, apertando as mãos. Sem combinar, dissemos ao mesmo tempo: Saudades, Relíquia! Corri para o carro, sorrindo de orelha a orelha, contando do reencontro. Se eu pudesse guardava ele num potinho, certeza.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Satisfação

Quando um dos seus muitos amores, desses que pareciam que seria para sempre mas acabaram, dá sinal de vida, ela entra em êxtase. Não sabe ao certo dizer qual é a sensação que sente quando eles a procuram, seja para falar a toa, para contar alguma novidade ou até mesmo para admitir que sentem falta. Só sabe que é prazerosa. Recaída não é, tem certeza. Afinal, o amor se foi e após diversas mutações, virou nada. Um nada que não é de todo nada, claro.
Para ela, o amor se transformava depois do término. Virava decepção, raiva, rejeição, arrependimento, mal dizer. Tudo dependia de como era o fim. Tinha amores que se tornavam amizade, logo de cara. Também havia aqueles com gostinho de bis. Depois de um tempo, todos se convertiam na mesma coisa: nada, que não era de todo nada. Mas também não sabia denominar o que era. Talvez carinho. Quiçá saudade.
Quando a procuravam, independente do desfecho, da trama, sabia que tinham valido a pena. Era gostoso saber que era, ainda, importante para alguém que, um dia, foi muito mais que importante. Lembrar era o final feliz dela e dos seus inúmeros amores. Sentada no sofá, distraída, via TV sem enxergar o programa que passava. Neste momento, ela recordava seus amores, os mais marcantes e intensos, sempre. Lentamente, um sorriso tomava conta de sua face.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Púlpito

Hoje é o dia do preto ou do roxo.
Estou de preto. Afinal, essa coisa se ser jornalista mil e uma utilidades, cansa. Bastante. Se além de escrever os textos, você revisa, driagrama, fotografa e edita imagens, faz vídeos, mexe com site-twitter-emails, trabalha mais que as 5 horas diárias previstas pelo Decreto de Lei nº 5.452/43 (Consolidação da Leis do Trabalho – CLT), e tudo isso sem a remuneração adequada: Vista-se de preto ou roxo! Hoje é o dia em prol do aumento real e da ampliação de direitos da profissão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

E dormir era tudo o que ela queria fazer


Ao sair do banho, pegou o creme como de costume e se sentou para espalhá-lo pelo corpo. Achava extremamente chato aquele ritual, mas necessário para a maciez da pele. Tinha um corpo bem desenhado, não era nem gorda, nem magra. No ponto. Não no ponto que ela queria, mas no ponto para quem a avistasse.
Deixou a toalha cair no chão, analisou-se no espelho, detalhe por detalhe. As coisas ainda estavam de pé. E não havia ninguém para admirá-la. Mas, vestiu sua melhor lingerie. Antes de deitar na cama, abriu a janela.
Era noite, só enxergava os faróis dos carros, os semáforos, as luzes do poste. Sozinha em seu quarto- sala- cozinha-escritório. Só o banheiro era separado. Decidiu fumar seu último cigarro, ia parar no dia seguinte, para sempre.
Enquanto fumava uma fome lhe bateu. Seu apetite estava voraz. Tinha fome de beijos, sussurros, corpo de homem. Fumou mais um cigarro. Foi para a cama. Dormir a fazia esquecer de seus desejos. Dormiu com vontade de não acordar mais.

sábado, 6 de novembro de 2010

Ai que saudade de ocê!



Era a primeira coisa que João escutava, depois de um longo tempo na estrada. Ficava meses fora, a percorrer o interior brasileiro, de norte a sul, em sua carreta. Quando voltava para casa, a mulher, ao escutar o barulho do caminhão, corria para fora. Ia ao encontro do marido, que antes de chegar ao portão, já a tinha nos braços. Grudada no seu pescoço, repetia sem parar: Ai que saudade de ocê. Ai que saudade de ocê. Ai que sauda...Oxê, pare mulher. To aqui! Ela se calava. E o puxava para dento de casa.
Enquanto João descansava, ela se metia no fogão, de onde saiam os pratos preferidos dele. Cozinhava tudo, tudo aquilo que ele pedisse, que tivesse vontade de comer. Nos meses sem ele, ficava longe do fogão. Não tinha apetite. Com ele em casa, não ligava nadinha de ficar horas na cozinha preparando suas guloseimas. Aproveitava aquele tempo dele ali, na rede, no sofá, na cama. O apetite dela pela comida e pela vida tinha voltado. Era sempre assim. Os dias com ele mais felizes, os dias sem ele, mais amenos. Sem tanta graça.
Ela chegou a sentir inveja e raiva do caminhão, porque o automóvel tinha o marido por mais tempo do que ela. Pensou algumas vezes em ir viajar com ele. Mas não dava certo. João dizia que ela era bonita demais para percorrer estradas, para tomar sol na cara e virar madrugadas. Não queria essa vida para ela. Então, num esforço danado, rodava quilômetros, sozinho.
Tinha vontade de dançar um xote, de dormir na cama, de arrancar o avental da mulher. Assim, a saudade que ele sentia rasgava seu peito. Às vezes achava que a saudade da mulher era pior, porque ela sempre estava no mesmo lugar, com o mesmo sorriso, a esperar. E a espera cansa. Entretanto, os caminhos que fazia sem ela também eram torturantes, também cansavam. Perdeu as contas de quantas vezes quis largar essa vida. Ainda não deu, quem sabe mais para frente. Enquanto isso, aproveita o aconchego de casa e o cheiro dela nele. Fica um mês ali, depois, tem que ir. Viajar de novo.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O dedo na ferida

Eu não vou para o céu. Não depois de lhe despejar palavras tão duras. Eu sei, eu errei, mas esse meu jeito de expulsar tudo o que me incomoda é inevitável. Tento, engulo seco. Mas sai, às vezes sem querer, outras por querer, como forma de ser livre mais uma vez. Sabe, quando algo me sufoca, eu fico louca. Tá, mais louca ainda. Eu preciso de ar. Porque eu sinto demais. É uma das minhas fraquezas, essa coisa de sentir o dobro. Eu sinto em intensidades não calculáveis. As minhas dores, assim como minhas paixões, são demasiadamente efusivas. Queimam-me, machucam. É, em você também machuca. O problema é que sou fraca demais. Então eu fujo, procuro alternativas, miro para outros cantos. Tem vez que dá certo. Se a dor persiste? Eu a transformo em outra coisa qualquer. Não nasci para dores. A minha busca incessante é por um equilíbrio, no qual eu me permita sentir dores. Expulsá-las nem sempre é o mais sensato. Eu invejo você e a sua sanidade. Certos exageros são desnecessários, sou ciente disso. Falta eu aprender.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O destino conjugando a vida

O ônibus que o trazia atrasou. Passou horas sem notícias dele. Pensou que tivesse desistido do encontro até receber uma mensagem avisando que chegaria somente à noite. Para a noite não tinham o que fazer. A sorveteria estaria fechada, a praça seria perigosa e o colega em comum teria ido para a casa dos pais, em outra cidade.
Como era a primeira vez que estariam juntos, ambos achavam que ir a casa dela era coisa precipitada. Na verdade, ela achava que era cedo demais. Mesmo não morando com os pais, teria que apresentá-lo a companheira de casa, aos vizinhos que certamente estariam reunidos no apartamento da frente. Era melhor que não fossem para casa dela. Então resolveram circular pelos arredores.
O bairro ficou pequeno e as horas passaram rápidas. Quando se deram conta, ele tinha que partir. Beijaram-se numa rua vazia, quase sem iluminação. Quando por fim se tocaram, a chuva veio. Não se importaram muito com o céu sem estrelas e as roupas molhadas. Foi a única vez que se viram. Mas bastou, para ele e para ela.
Por um tempo mantiveram contato. Depois se perderam um do outro. Ficaram anos sem se ver. Recentemente se encontram, relembraram daquela noite de chuva. Ele a elogiou, disse que continuava linda, que seus olhos mantinham o mesmo brilho. Ela agradeceu, falou da saudade que tinha e disparou perguntas, como sempre. Queria saber de tudo, como andava a vida dele.
Agora ele era casado. Foi tirando a foto da carteira, mostrando o filho de um ano. O filho era a cara do pai e o pai um babão. Perguntou se ele era feliz. Um silêncio ficou entre os dois. Não queria aquele silêncio, indagou por curiosidade, porque na época da faculdade ele nunca falou em filhos, casamento, essas coisas. No fim ele respondeu que não tinha do que reclamar. Entendeu que ele tinha seguido o ciclo natural da vida.
Ela falou do trabalho, da família, dos amigos, dos amores. Admitiu estar solteira. Ele não acreditou. Lembrou de quando se conheceram, dos rapazes que a desejavam. Mesmo com os anos, não poderia ser diferente, deveria haver muitos homens para ela escolher, já que continuava com a mesma beleza, a mesma simpatia, o mesmo tom harmônico de voz.
Não era preciso perguntar se ela era feliz, ele via a felicidade em seus olhos. Era do tipo que sorria além da boca, com o corpo inteiro. Falaram sem parar, queriam aproveitar o reencontro. Absorver a presença do outro. Depois de falar do presente, puseram-se a conversar sobre o passado. Do dia em que se encontraram, das conversas infindáveis que tinham, da companhia que um fazia ao outro nos dias em que a melancolia os visitava.
Por fim, o celular dos dois tocou. Ele tinha que levar o leite, ela tinha uma reunião. Despediram-se com um demorado abraço. Atravessaram a rua, em lados opostos. Saíram rindo, com a certeza de que a vida não era feita apenas de escolhas, mas de pequenos erros e um tanto de incerteza. Talvez se encontrassem daqui alguns anos de novo. Ela poderia estar casada e ele separado. Poderia ser ao contrário também. Ou nada disso.

sábado, 30 de outubro de 2010

Sem sorriso para o pão de queijo

Uma vontade enorme de continuar na cama enquanto o despertador anunciava que era necessário acordar. O domingo acabou. Não esperava muita coisa para uma segunda-feira. Levantou-se, foi fazer o café, como de praxe.
Antes de chegar à cozinha foi até a porta do quarto dos filhos. Toda manhã é assim, mesmo eles não estando mais ali. Não há mais brinquedos espalhados pelo chão ou roupas sujas jogadas atrás da porta. Desde que os filhos foram para a faculdade, os quartos permanecem intactos, organizados tal como nunca foram. Espia as camas arrumadas. Respira fundo, sente saudade. Vai terminar o café.
O marido sai do banho, ainda enrolado na toalha senta à mesa. Beija-a. Diz bom dia. Ela pergunta se ele teve uma boa noite. Responde que sim, pergunta do sono dela. Ela fala que foi bom. Mentem. Ambos dormiram mal. Depois de vinte anos de casado, permitem-se mentir um ao outro. Ela repara que o olhar dele está distante, parece pensativo. Mas não comenta.
Antes de sair para ir ao escritório, ele a mira na porta. Fica alguns segundos ali, observando-a. Ela repara. Acha estranho o beijo na testa, o abraço um pouco mais apertado do que o normal. Parece uma despedida, pensa. Esquece desses pormenores e começa a pintar mais um quadro em seu ateliê, que fica nos fundos da casa. Tem vários quadros e louças. Gosta da pintura, do artesanato. Têm clientes para atender, quadros para pendurar, visitas a fazer.
Tira a roupa manchada de tinta. Vai para o carro com duas encomendas para entregar. São pinturas frescas. Quadros já emoldurados, gritando por seus donos. Quer entregá-los o mais depressa possível. Atende duas ou três ligações pela manhã. Conversa com os filhos, fala com a mãe que mora em outra cidade. Almoça com alguns empresários que se interessaram pela sua arte. Sente-se orgulhosa, vai expor pela primeira vez.
Antes de retornar a casa, vai conferir as novidades do mercado. Quer cores novas, pincéis diferentes, texturas. Precisa de algumas telas também, de todos os tamanhos. Sai da loja com pilhas de sacolas. A cena é comum, acontece em todo começo de semana.
Passa na padaria, compra alguns pãezinhos, lembra de pegar a manteiga que acabou e escolhe um pão de queijo para agradar o marido. Está em casa novamente, de onde aguarda o sorriso dele. Porque é assim que ele chega todo o final de tarde, sorrindo. Naquela segunda-feira, ela não viu o sorriso. E nem nas outras segundas-feiras. E nem nos demais dias da semana. O pão de queijo ficou duro.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Seguindo conselhos

Guardou o vazio no bolso, como o aconselhararam. Olhou para o céu, supirou, foi ao cinema, essas coisas. E mesmo assim o vazio se transformou num buraco, de onde a tristeza e a angustia transbordavam. Agiu errado. Deveria ter posto o vazio num saco fechado, jogado-o longe. O bolso era perto demais.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Diálogo da semana

P1: Quer saber, vou virar biscate! É isso.
Meia hora depois...
P1: Se fosse há uns dois anos atrás, teria chorado.
P2: Por quê?
P1: Porque detesto ser invadida.
A roda inteira ri. Ser biscate não durou nem uma hora. Droga!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

De uma solidão não esperada

Tinha mãe, pai, irmãos, avós, sobrinhos e sobrinhas. Cachorro. Não achava justo se sentir sozinha e até gostava de ficar só. Momentos ela e ela eram extremamente necessários. Essenciais à sua saúde mental e espiritual.
Da solidão que todos falavam, ela nunca tinha sentido. Embora sozinha, estava sempre acompanhada. Não tinha um milhão de amigos, mas tinha os melhores, com os quais podia contar para tudo, para o que fosse.
Os companheiros não eram tantos, porém não lhe faltavam. Podia escolher: aquele que dizia que ela era de perder o juízo ou o que afirmava que ela era a que mais beirava a perfeição. Tinham outros elogios, mas desses ela gostava mais.
Então chegou o ano novo. No meio dos fogos, das músicas, dos gritos entusiasmados, de 2009 dando adeus enquanto 2010 dizia oi, a solidão bateu. O silêncio, mesmo inexistente naquele momento, impregnou seu ser.
Sentiu um arrepiou frio que tomou conta de seu corpo até arrepiar a sua alma. Quando doeu na alma, entendeu do que se tratava. Mais um medo estava incluso em sua lista. Achou que fosse coisa de virada de ano, mas ficou.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Uma não-declaração de amor

É verdade, eu nunca tinha reparado, toda vez que o vejo, comento.
Meus comentários são os melhores, garanto. Comento com uma pessoa, no máximo duas. Falo do quanto você estava bonito, do quanto você é aquilo que eu gostaria de ter. Essa vontade aparece de vez em quando, em nossos encontros ou quando você me liga, manda mensagem. Estranho não? Porque nos conhecemos há muito tempo, há muito tempo mesmo!
Você me fala da sua vida, do que está fazendo, por onde anda. Eu conto da minha, da minha falta de planos. Daí me pergunta dos amores, tem uma curiosidade excessiva quanto a isso, e quando falo dos que encontrei ou que tentei viver, você ri. Ri porque normalmente eu me dou mal. Às vezes acho que até gosta disso.
Eu sei, você nunca se dá mal, porque tem um jeito único de se relacionar. Peculiar. Então me envolve nos seus braços, fala para eu me cuidar, beija minha testa. Me dirige um olhar que só eu e você entendemos o que significa. Eu fico com o seu perfume e com a certeza de que é para ser assim. Você para lá e eu para cá.

Quadrilha moderna

João pegava Teresa que pegava Raimundo que pegava Maria que pegava Joaquim que pegava Lili, que não amava ninguém, mas pegava todo mundo.
João foi para a Argentina casar com Raimundo. Teresa ficou com Joaquim, mas também é amante de Maria. Lili foi morar com o Fernando e depois casou com a Sabrina que não tinham entrado na história.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

E se não houvesse amanhã?

Foi para o hospital. Estava com febre, apenas. Não imaginava que a temperatura alta do seu corpo indicava seus últimos instantes. Pensou em resfriado, gripe, alguma virose. Os médicos não souberam dizer, o diagnóstico foi impreciso, várias patologias possíveis.
No momento em que partia, o telefone da sua casa tocava e seu cachorro latia incessantemente para a TV que não desligou. O caderno onde anotava as contas pagas estava aberto, tinha riscado a última prestação do carro. A cama ainda estava desfeita, a geladeira cheia, a lata de cerveja aberta. Tinha saído para voltar, mas acabou deixando, para sempre, a noiva, a família, os amigos. Além de planos inconclusos e desejos insaciáveis. Uma vida pela metade.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Quadro sem pintura, retrato sem moldura.

A aquarela dos meus olhos é que lhe deu cores. Cores que eu mesma pintei, que eu mesma mesclei. Você é desprovido de cores. Chega até ser nebuloso. E a névoa que o envolve é a cor da minha angustia por não notar tamanha obscuridade antes. Enquanto eu queria absorver a sua presença, você nem sequer notava a minha. Até os beijos e abraços eram limitados. Mas as palavras não. Sem saber o que falava foi falando sem parar. Palavras de bom gosto, dessas que o ouvido adora escutar. Das quais os olhos saltam ao ler. Como sou apaixonada pelas letras, por elas juntas carregando significados indescritíveis, apaixonei-me pelo seu falso retrato. Que eu mesma fotografei. Coisa de coração tolo, de quem se entrega por entregar. Eu inteira, você nem pela metade.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Previsíveis

Rolava um clima. Sabiam disso, mesmo que nenhum dos dois falasse. Não precisava. Os olhares não se calavam e eles mesmos, apesar de discretos, não escondiam. O dia em que tomou coragem e ligou, o destino conspirou contra (ou a favor?). A bateria do celular acabou antes que ele escutasse o sim. E, como a coragem já tinha ido embora, preferiu não retornar a ligação. Ficou por isso. Eram presos às convenções sociais, não burlavam as regras. Acomodavam-se com o que tinham e não achavam necessário certos devaneios. Tinham predileção por uma vidinha estável e controlável. Ambos covardes. Era mais fácil manter a pinta de bom moço e boa moça.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Tardes de sol a pino

Quando as tarde de sol mais intenso começavam a despontar seu olhar outrora perdido e demasiadamente cansado passava a apresentar leveza. Sua íris sorria. Depois da íris, o corpo inteiro era embriagado de alegria. A melancolia ia embora e as janelas fechadas se abriam. A brisa anunciava a primavera e a preparava para a estação das flores. A temperatura mais alta, não mais amena, despertava o calor das pessoas. Gostava desse calor. No verão, vestia seu melhor sorriso. Depois do inverno, sua vida era de cores. Antes de acabar o ano já sentia saudade do que ainda nem tinha vivido.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Além da superficialidade ofertada em qualquer esquina.

Carregava consigo certas estranhezas, que o tornavam diferente do resto do mundo. Era assim que se sentia. Uns respeitavam suas escolhas furadas, seus anseios tortos. Outros esfregavam na sua cara tais opções, considerando-as mesquinhas, pequenas demais. Por um tempo o importunaram, insistindo para que mudasse de lado, para que não fugisse à regra. Sentiu-se fraco. Passou. O status que lhe queriam dar não combinava com a sua rotina. Para o dia a dia queria algo além daquela superficialidade ofertada em qualquer esquina.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Uma prece para você

Hoje, o carro virou navio e todo o resto que se encontrava fora dele, o oceano, o rio, o lago. Água. E lá fora estavam os jacarés, os tubarões, os peixes. Dentro do automóvel, ou melhor, do navio, eu, a capitã, você, o passageiro, e a sereia, a nossa convidada, tal como você intitulou.
No nosso trajeto desviamos de ondas gigantes, de estrelas do mar, dos peixes, dos jacarés e até de uma bruxa que apareceu. A sereia, mesmo muda, participava de nossas brincadeiras e você aproveitou para fazer inúmeras perguntas a ela. Até sentou no colo dela, constatando que a cauda é mole e que não estava molhada, foi o que você me disse.
Envolvida no seu mundo imaginário, de contos de fada, de fantasias inusitadas, faço uma prece. Uma prece para que você demore a crescer, para que o seu sorriso, que eu vejo no retrovisor, seja eterno.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Que o dia pouse na minha cabeça

O reflexo do espelho parecia diferente. Sua barba comprida indicava que as transformações não ocorreram de uma hora para a outra, há tempos se encontrava naquele estado. Transformado.
As mãos estavam no lugar dos pés e vice-versa. A perna esquerda estava do lado direito. E com seus pés no lugar das mãos podia alisar as suas costas que agora se encontravam onde era o peito. A cabeça, mesmo zonza, ainda estava no mesmo lugar. Entretanto, o mundo, para ele, mesmo em pé, estava de ponta cabeça.
O que via não correspondia à realidade de outrora. Até o quarto que vivia bagunçado, agora estava arrumado. O celular que não tocava, toca incenssantemente. As músicas que eram escolhidas, não são mais as preferidas. A comida de todo dia se tornou a refeição do fim de semana.E até água que bebeu tinha um gosto que não era dela, um sabor desconhecido.
Uma raiva súbita lhe tomou a alma. Não se adaptaria, concluiu. Mas também não tinha certeza daquilo que realmente queria. Respirou fundo. Desejou que o dia pousasse em sua cabeça para que clareasse sua vida. Pronto, sabia o que queria.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Microconto de amor

Fui eu quem te avistei. Então, no fim e no fundo, eu sempre soube que a culpa era minha. Sem final feliz para mim e para você. Ou não. Quiçá seja feliz para mim e para você. Para sempre.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Dona do tempo

Em uma de nossas conversas, de papos duradouros, dos quais estendemos o máximo que podemos, você me disse que o que mais desejava era ser dono do seu próprio tempo. No início fiquei sem entender, pois mora sozinho, não tem família, é dono de si mesmo.
Como então não seria proprietário de suas, só suas, horas? Você me explicou depois. Era, e ainda é, o trabalho que lhe impede de ser, realmente, livre. Afinal, é ele que lhe acorda, que lhe diz quando deve almoçar, que lhe dá folga. É o trabalho que lhe proporciona até seu ócio. Maldito trabalho. Confabulamos juntos sobre o assunto, enumerando as mil e uma coisas a mais que nos impõem horários.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos, disse o poeta. Eu cansei antes. Mais do que nunca acordei com a vontade de ter a minha liberdade temporal. Levantei pronta para reivindicar meus direitos sobre o meu, só meu, tempo. Você me ajuda? Podíamos começar quebrando os relógios e todos os outros tipos de marcadores de tempo, que tal?

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O maestro

Enquanto o menino de menos de sete anos insiste para o pai comprar o balão azul, a banda municipal toca. Ao mesmo tempo em que o casal de namorados escolhe a melhor e maior maçã do amor, que a mãe levanta a menina que acabou de cair, que o malandro ensaia sua próxima cantada, que o prefeito cumprimenta o povo, a banda municipal passa.
E entre conversas, gritos, o barulho dos brinquedos e outros sons diversos, a banda municipal se silencia. Ninguém a escuta.O som da flauta doce, aliado ao reco-reco, trompete, trombone e saxofone, já não encanta mais a plateia. Para a tristeza do maestro, a banda toca para o nada. E a tristeza do maestro só não é maior, ou talvez seja maior, porque ele esqueceu tudo. Tudo.
O filho explica que o homem que rege a banda não sabe mais quem é, esqueceu do nome, do sobrenome. Não lembra que casou, que separou, casou de novo e teve filhos. Doze filhos. Dos netos? Ele não conheceu nem o primeiro. O filho do maestro fala, com a voz sofrida, de quem procura uma explicação, que a única coisa que restou da memória de seu pai foi a música.
As partituras são as únicas lembranças do passado. Tamanha é a paixão do maestro pela banda, pelos instrumentos que ordena, pelos músicos que comanda. Músicos companheiros e amigos de longa data. Entretanto, da amizade o maestro não se recorda. A sina dele é lembrar só da melodia.
O filho dele não entende o porquê da lembrança ser só as partituras, conta que era um bom pai, um bom marido. Um homem que gostava de reunir a família e se sentir cheio dela, dos amigos, das pessoas. Então, o filho recorda o tanto que o pai ensaiava, o tanto que se dedicava à banda. Talvez fosse a dedicação? Afirma, mesmo que indagando as recordações do pai.
E vê-lo assim, no meio da praça, tocando para o nada, entristece o filho do maestro. Porque ele sabe que o pai já foi prestigiado, ele sabe que teve brilho, que tocou até para o presidente da república em visita ao município. Mas o pai não sabe. O Alzheimer não deixa o maestro saber que um dia o público pediu bis.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Pedido de casamento

Eu coloco o relógio para despertar e você me acorda. Você arruma a cama e eu guardo a roupa espalhada pelo quarto. O café da manhã? Pode preparar que eu já lavo a louça. Você pode me levar de carro até o trabalho, mas eu posso te levar também. Tanto faz, o que for mais prático. Revezamos. É melhor comermos fora ao meio dia. Não demore para ir me buscar, detesto esperar! E por detestar a espera e temer a demora, já estou na rua, te espero no bar. Na volta para casa trocamos algumas juras com hálito etílico. Dividimos a conta de luz e de telefone. Juntos podemos enfrentar a rotina, falar mal dos vizinhos e dormir de conchinha. Brigar. E isso pode ser todo dia.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Ônibus 227

Eu a aguardo ansiosamente pela manhã. De tanto observá-la sei de cor as pintinhas do seu pescoço. São cinco, que parecem descer em fila à sua saboneteira. Aliás, é na sua saboneteira que me perco, na sua pele branca ávida, por onde parte de seus cabelos longos repousam. Cabelos cor de cobre. É cobre que é avermelhado? Sou péssimo com essa coisa de denominar cores. E quantas cores você usa! Todas. Gosto mais do seu vestido branco que você costuma usar na sexta-feira, não toda sexta-feira, mas às sextas-feiras. Você fica tão linda. Imagino que na sexta-feira seja o dia de todos irem ao trabalho com roupas mais despojadas, pois nos demais dias você está elegante, vestida com um terninho ou algo do tipo. Sei também que na sexta não é sua folga. É, meu bem, eu te acompanho até a porta da sua empresa, mas você não sabe e, quiçá, nunca irá saber. Todos os dias são assim. E isso acontece há um ano e quase quatro meses. É tempo, eu sei. Eu lembro de você ainda morena, quando seus cabelos ainda não eram avermelhados. Foi a primeira vez que a encontrei. Perdi o horário do ônibus, tive que recorrer a outra linha. Foi nessa linha que você apareceu e eu permaneci. Ando duas quadras a mais, por você. Porque se eu pegar o ônibus que passa em frente a minha casa eu não a vejo, eu posso te perder. Prefiro andar essas duas quadras e encontrá-la todos os dias, incluindo-a na minha rotina, nessa minha vidinha sem tanta graça. A graça é você. Que me despertar, que sentada num banco qualquer a olhar para rua, me fascina. Já te contei que fucei nas suas compras para ver o que costuma levar para casa? Não se preocupe, não mexi em nada do que você carregava. Mas meus olhos entraram na sua sacola de mercado e vasculharam seus pertences. Tinha doces, suco natural, um pacote pequeno de pão, um pouco de frutas e o absorvente. Imaginei que estivesse naqueles dias. Até isso eu sei de você. Não precisa ficar assustada, eu não vi nada demais. No outro dia bisbilhotei sua sacola novamente, notei que havia ração e conclui que você tem um cachorro em casa, provavelmente. Um dia pode ser que eu saiba o nome dele...Sei também que gosta de filmes e música. Posso até adivinhar os filmes que assistiu no último fim de semana. Não, não lhe segui até a locadora. Mais uma vez, foi sua sacola que a denunciou. Você também abriu os DVDs, como quem confere o que acabou de escolher. Então eu, sem querer, sei quais são os filmes. Gostei dos filmes. Gosto quando você escuta música. De vez em quando a vejo com seu Ipod, batendo os pés, batucando as mãos. Você cantarola em silêncio aquilo que escuta enquanto observa o nosso trajeto pela janela lateral do transporte coletivo. Falei nosso trajeto, não é mesmo? É. Já te inclui na minha vida. Falta só você saber.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Mais um bilhete

31 de agosto de 2009.

Eu me sento para lhe escrever. São textos estilo cartas, mas não chegam a ser cartas, já que não possuem tal estrutura. São textos, onde eu sou o remetente e você o destino. Destino. Meus textos não chegam ao meu destino, porque eu não os envio. Estão empilhados na minha estante, no meu quarto. Alguns estão estocados no meu mundo particular, encravados no meu peito, na minha mente. É preciso lapidar esses textos antes que eu os coloque junto aos demais. Talvez eu faça isso. Ou não. Porque não é bom saber tudo. O que acha disso? Fiquei pensando a respeito e conclui que certos verbos e substantivos não devem ultrapassar a barreira do pensamento. Melhor assim. Eu não conto tudo, confesso. Mas se você soubesse o que está ali na prateleira viria correndo para cá. Para mim. Eu consigo imaginar você desdobrando os papéis, alguns já amarelados e outros nem amassados, recentemente empilhados. Suas mãos ligeiramente ágeis escolhendo um texto ao invés do outro, tentando me absorver o mais rápido possível. Eu o vejo impregnado dos meus textos, das minhas histórias, das minhas lembranças, na tentativa de conter o tempo. Na tentativa de viver um pouco daquilo que eu conto, comigo. Os bilhetes estão a sua espera. Você poderia voltar antes que eles não caibam mais no meu quarto. Na estante já não tem mais lugar...

Cotas e inclusão social

E como ele é? É autista, disse, como quem responde onde mora. Naturalmente. Ficou surpresa. Sua cara de espanto não escondia o susto pela resposta dada. Tentou disfarçar e não quis saber como era um relacionamento com um autista, não que tivesse preconceito ou algo do tipo, era diferente demais. Esquisito, até. Mil pontos de interrogação a cutucaram. Passado alguns segundos, seu rosto não mais assustado, se acostumou com a ideia. Afinal, uma outra amiga já tinha se envolvido com um surdo-mudo, então, por que não um autista? Pensou nas cotas, nos programas de inclusão social. Depois riram. Riram juntas do mal entendido.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O triste fim de Raquel

Intitulava-se fiel até aparecer a primeira calça masculina à sua frente. Era tomada pelo instinto quando sentia o cheiro de machos. Em presença deles, a fidelidade desaparecia. Podia ser namorado, amante, noivo, marido, irmão de outra. Não importava, desde que tivesse o X e Y, bastava. Ao fim, depois de sair com o padrasto, ficou sozinha, à mercê do primeiro que aparecesse. Ninguém apareceu.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Um quê a menos

Eu sei o que aconteceu, você achou que eu era especial. Me colocou no altar, na bolha de cristal. Me venerou. Quase acreditou na perfeição que seus olhos apontavam. Cegou-se frente às qualidades que seu coração me destinava. E me ver tão comum, tão real e cheia de imperfeições quanto qualquer outra pessoa, magoa, ofende, fere. Fere você. Fere a mim. Não corresponder as suas expectativas me machuca.Eu poderia ser mais. Poderia ser tudo aquilo que você deseja, mas não. Eu me limito a ser apenas eu mesma. Eu que não tenho um quê a mais, eu que sem brilho me faço fosca. Quase obscura. O que me conforta é que eu nunca menti, nunca me fiz do que não sou. Se você fechar os olhos e abri-los novamente vai ver que sempre fui assim: Um quê a menos, que jamais beirou a perfeição.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Zoá e o guarda-chuva

Antes de nascer seus pais já haviam comprado. Do lado da cama do hospital maternidade, por entres as várias flores que exalavam cheiro de manhã, lá estava o primeiro guarda-chuva de Zoá. Pequeno, tal como ela era quando veio ao mundo.
Seus pais sabiam da importância de se ter um guarda-chuva, dado à modernidade dos tempos, dado aos perigos do dia a dia, da imprevisível maldade alheia. Quando deu seus primeiros passos, sua mãe já começava a lhe ensinar: O guarda-chuva lhe protegerá das chuvas de traições, das tempestades de ilusões e, principalmente, dos tempos de cólera intensa. Também lhe guardará das garoas de decepção, dessas que chegam sempre sem avisar. Deve segurar o guarda-chuva firme, Zoá, falava a mãe enfaticamente.
A menina, ainda sem entender as letras, sorria. Mas nada de segurar firmemente o guarda-chuva. À medida que foi crescendo, seus pais foram lhe presenteando com guarda-chuvas de diferentes tamanhos, formatos, cores. Havia ainda os que além de guarda-chuva, poderiam ser usados como guarda-sol. Mesmo assim, nada seduzia a menina, que cresceu sem muitos cuidados.
Zoá tropeçava nos brinquedos, pegava gripe por andar descalça, brigava no colégio, desafiava os vizinhos. Fazia poses inusitadas, discordava, corria. E até a maturidade tomou chuva. Várias chuvas. E gostava dos pingos que lhe encharcavam. Sentia-se mais leve após as tempestades, mais livre após os tempos de cólera e muito mais fortalecida depois que as garoas cessavam.
Quando chovia os guarda-chuvas tomavam conta das ruas, lotavam as calçadas. Não se via rostos, não se enxergava pessoas. Todo mundo era um amontoado de guarda-chuvas, sem identidade, sem vida. Zoá se irritava. Não entendia o zelo das pessoas, a cautela para a hora da chuva. Pensou em contar seu segredo, em propagar o não uso do guarda-chuva. Desistiu. Existem dois tipos de pessoas: as que usam guarda-chuva e as que não usam. Zoá não usava guarda-chuva.

Dia especial

Quando acordou, ele ainda estava ali. Respiração lenta, corpo à mostra. Ao se levantar, poderia colocar duas xícaras em cima da mesa, colocar mais pó no café e fazer duas torradas. Tudo era o dobro. Até a felicidade que sentia.

domingo, 15 de agosto de 2010

Meu resumo

Chego atrasada na reunião. Não tem mais cadeiras, mas abrem espaço e arrumam uma para que eu sente. Sento. Escuto a conversa, pego o discurso pelo meio. De repente...
- Larissa se apresenta, todo mundo aqui já se apresentou.
O que eu falo? O que eu falo? Os olhares todos voltados para mim, odeio gente me olhando. Lá vai. Eu tenho 25 anos, medo de altura. Gosto de filmes, se quiserem podem me convidar para ir ao cinema ou para assistir em casa mesmo. Na infância eu me escondia atrás da perna da minha mãe, brincava de bonecas. Ia para a rua, onde brincava de esconde-esconde, passa anel, pega-pega e por aí vai. Fiz balé na adolescência, época em que ficou comprovada a minha falta de coordenação. Meu primeiro beijo foi sabor melão, frustrante para uma pessoa que odeia...melão. Chorei. Usei aliança de compromisso todas as vezes que namorei. Um par está jogando bola no campo de futebol do clube na frente de casa, o outro está no lixão da cidade – quando resolvi me purificar e joguei todas as coisas dele fora - e a outra foi devolvida por quem me deu. Poderia ter feito um pingente com elas, ok, hoje eu sei. Tinha fama de CDF no colégio, porque, além de usar óculos e sentar nas primeiras carteiras, gostava de tirar acima de 90, melhor se fosse 100. Me disseram que eu escrevia bem e eu, iludida, quis ser jornalista. Quando entrei na faculdade, deixei de me importar com números, em todos os campos do conhecimento e da vida. Exagerei desde então. Esqueci de falar: sempre fui grudada com a minha mãe. Gosto de cachorros, mas longe de mim, do meu quarto, da cozinha. Prefiro destilado do que cerveja. Evito beber demais, porque posso ficar sem coluna ou achar que sou a Gretchen. Prefiro calor ao invés de frio. Não gosto de demorar no mercado, de esperar, de passar frio. Já chorei porque esperei demais, já chorei porque tava frio demais. Sim, eu choro por coisas que eu não deveria chorar e não derramo uma lágrima em momentos em que deveria derramar. Não adiciono desconhecido no MSN e no Orkut. Tenho medo de estranhos, principalmente da internet. Tenho vontades que vem do nada e gosto de saná-las, quando não posso, fico irritada. Eu posso falar demasiadamente, sem vírgulas ou pontos, assim como posso ficar calada. Depende. Sou cautelosa na maioria das vezes, mas já peguei carona com um estranho no estrangeiro e já vim para casa de carona de caminhão junto com um amigo que tinha menos juízo que eu. Meu sonho era pegar carona de caminhão. Tenho sonhos estranhos. Me atrapalho ao mandar mensagem no celular e não atendo o passado. O que passou, passou. Tenho amigos de todos os tipos e tamanhos. Se pudesse guardava eles em potinhos e levava comigo para todos os lugares. Amo ser tia, e se eu soubesse que seria tão bom não teria feito drama em relação à denominação. Aliás, além de dramática, eu sou neurótica. Minhas idas aos consultórios médicos costumam ser engraçadas, principalmente se eu resolvo abrir os exames e fingir que sei tudo o que está escrito ali. Tenho mania de anotar tudo e perco todas as anotações. Já fui mais organizada, mais centrada, mais equilibrada. As pessoas costumam gostar das minhas histórias e se eu fosse mais desinibida até escreveria uma autobiografia que, quiçá, poderia me incluir na lista dos mais vendidos de algum jornal ou revista de prestígio. Não tenho carro porque sou ambientalista. Mentira. Confesso que não possuo bens no meu nome. E, quer saber, ainda não me importo muito com isso. Disseram que isso é falta de ambição e que pode não ser bom. Não sei. Afinal nunca quis ser rica, se quisesse teria feito alguma engenharia ou medicina. Não, acho que medicina não. Não tenho vontade de ter um analista, de por silicone ou de andar de salto o dia todo. Costumo não usar maquiagem e meu cabelo não é alisado. Eu poderia ser hippie, mas gosto de depilação, banho e algumas futilidades. Já pensei em fugir, várias vezes, e viver de amor. Sou viciada em shows e quando encontro alguém de quem sou fã, sou totalmente tiete. É tem isso também, sou expressiva, espontânea, transparente. Não quero ter filhos (mesmo que de vez em quando eu deseje um com pele e cabelos de negro mas com sardas e cor de cabelos de ruivo). Estou escrevendo um livro e já plantei uma árvore com o meu nome na Floresta Amazônica, era o que dizia o site. Ah, eu tenho mania de morder o canto da boca...Huuummm, eu já disse que às vezes me sinto perdida?
- Oi, meu nome é Larissa e eu tenho Orkut.
Resolvi simplificar. Todo mundo ri, enquanto eu digo mais umas três ou quatro palavras.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O rugido do leão

Manhã, precisamente 06:30.
Despertador.
Esfrego os olhos e...Soneca.
Bom dia. Agora nasceu um novo dia,Doutor Zezé. Bom dia, Dona Mariquinha.Bom dia, Doutor Zézinho...”
Toca o despertador, novamente.
E entre a escolha de me prolongar na cama ou acordar de vez, o rugido.
- Uarrrrr, Uarrrrr*.
- Nossa, o que é isso? É um leão?
- Eu chou o leão, papai. E volta a rugir.
- Uarrrr, Uarrr.
Acordo, pois entre ficar na cama e ver meu sobrinho se rastejando pela casa como se fosse um leão, o melhor é levantar para não perder a cena.
Acordar com sons de rugidos que pouco se assemelham ao rei da floresta, mesmo que ele tenha se esforçado para parecer, não tem preço.



*sou péssima com onomatopeias

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Vou te contar...

Quando estou com você, meus pés não ficam no chão. E essa coisa de ficar sem chão aconteceu na primeira vez que o vi. Foi no momento em que me rendi ao seu sorriso que voei, para longe. E mais distante eu fui quando eu me apaixonei por todo o seu resto.
Como não estou acostumada, me perco entre as nuvens, erro caminhos e estranho o céu. O céu que é mais vivo, mais intenso, mais azul. Então eu aceito um presente sem futuro, uma presença na ausência. E confesso que aceitar isso, para quem tinha os pés no chão, é difícil. Mais complicado ainda é me ver em espiral, eu que gosto tanto de linhas retas.
Entretanto, a sensação do vento batendo na cara, das pernas no ar, é boa. É gostosa. Você me mostra a leveza da vida e, mesmo longe, descomplica a minha rotina. Por isso essa vontade súbita e constante de lhe consumir. De absorver a sua presença.
Eu vejo cores em você. Cores que nem Almodóvar enxergaria, cores que eu e você, juntos, pintamos.

domingo, 8 de agosto de 2010

2º domingo de agosto

Ver você tão frágil me sensibiliza. Achava que nem sentiria tanta falta, achava que como somos água e óleo, melhor mesmo era cada um para seu lado. Mas a saudade nos transforma. Eu sinto sua falta e até penso em te ligar, às vezes te ligo outras não. Ainda não me acostumei com a gente longe mas mais perto.
Quando você desabafa, dizendo que nunca se sentiu tão sozinho, eu fico mal. Porque nessas horas eu queria te dar aquele abraço de pai e filha, desses que a gente teve tanto tempo para dar, mas nunca demos. A hora que você voltar a gente se abraça. Eu sei. Feliz dia dos pais.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Meu verão


Sentados no sofá, ele chega mais perto de seu ouvido. Você está de verão, mas eu estou de inverno, mesmo no verão, sussurra. Ela o escuta e pensa naquelas palavras que soaram como melodia. Pensou no que ouviu e repetia para si mesma. Você está de verão, mas eu estou de inverno, mesmo no verão. Você está de verão, mas eu estou de inverno, mesmo no verão. Você está de verão, mas eu estou de inverno, mesmo no verão. Entendeu o que ele quis dizer.
Ela sempre radiante, com o sorriso fácil, com seu vestido leve, cabelos ao vento. Com ela tudo tinha mais brilho e ela tinha ciência de tal dom. E ele, mais centrado, o máximo que fazia era sorrir de canto ou morder os lábios quando algo lhe agradava. Deixava a leveza e seu brilho guardados. Seus raios eram vistos só aos poucos, na intimidade, demonstrados de maneira discreta, quase invisível. Não era expressivo como ela. Talvez por isso ele acreditasse que o verão era ela e não ele.
Enganava-se. Para ela, ele é quem estava sempre no verão, porque transformava a melancolia em obra de arte, a tristeza em beleza. A rotina em filme, a vida em espetáculo. Antes de deixá-lo, quis que ele soubesse. Você não vê, mas o verão é você.
Foto: Pablo Accorinti, o verão.

Querendo o mundo

- Tia, quando eu queche vo pode me leva chozinho pra escolinha. Eu vo...eu vo diligi.
- Verdade, vai mesmo.
- Quando eu fica gandi vo pode...pode...
Olha para a rua, contempla-a, deseja-a.
- Vai poder, o quê?
- Vou pode anda na lua chozinho.
E volta a mirar a rua, que nem é tão grande assim, que acaba, logo ali, virando a esquina de casa.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Vende-se

Era mignon. Do tipo que tem tudo no lugar certo, se quisesse podia ser modelo, miss, atriz. Podia sim, se expor, nua. O corpo era perfeito, combinava com o seu cabelo preto que ia até sua fina cintura. E seu cabelo por sua vez destacava seus olhos azuis cor de céu.
Os homens babavam e as mulheres a invejavam. Era, de fato, muito bela. Sua beleza só não era ímpar, porque ela parecia com qualquer garota de comercial de lingerie, com qualquer garota de propaganda de cerveja. Perfeita, exclamavam.
Ao abrir a boca a moça se desfalecia. A verbalização não lhe caia bem, pois o silicone, a chapina definitiva, os combates à celulite e as artimanhas para caçar homens ricos imperavam no seu discurso.
Discurso mesquinho, cheio de preconceitos, de futilidades, típicos de quem vinha da alta sociedade. E talvez por isso, de vir lá de cima, não tivesse vergonha alguma de impor suas opiniões vazias, de expor suas preferências de pouco valor. No mundo da moça bonita, não havia sutilezas ou abraços sem preço. Tudo tinha um valor, tinha de ter. Até ela se colocava à venda.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Uma vez por mês.

Em casa nada me consola, mas a rua também não alivia. É tudo à flor da pele. A intensidade me provoca. Caçoa da minha calma, da minha sensatez, dos meus pés no chão. Pronto, não tenho mais chão. Lá dentro tem muita chuva. A enchente desmoronou as minhas emoções e tudo está em águas, flutuando. Boiando. Meus olhos cansam, porque também estão cheios. Pelo rosto escorre aquela água salgada, que desce amarga, azeda, rasgada. Me encontro fora de contexto, não combino comigo mesma. Sou uma estrangeira em meu próprio corpo, em minha própria mente. E tudo o que eu ouço são goteiras. Incomoda, irrita. Pim, pim, pim.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Canto de Ossanha

Procurei em outras curvas me perder. Mas meus olhos, minha boca, não se sentiam tão à vontade com curvas que não fosse a dela. Era da boca da moça quase estranha que sentia falta. Era nos lábios dela que meu corpo queria se perder. Nossos encontros aconteciam ao acaso. E o acaso sempre nos proporcionava bons momentos. Juntos permanecíamos como o ímã na geladeira. Então, eu que sou um poço de sensibilidade, que acho que a vida é poesia, sentia-a ardentemente e a deixei entrar em mim. Ela entrou, sem hora e data para partir. Acomodado, permiti que fosse tomando espaço. Ela era espaçosa. Coração tolo. Tão tolo quanto eu.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Brisa

Foi rezar na língua dos anjos, cantar louvores, fazer penitência. Foi obreira, freira, pastora, ministra da eucaristia. Nada a convenceu. Então fez oferenda para Iemanjá, dançou para Exú. Falou também com espíritos, fez simpatias, jogou cartas. Pagou para lerem sua mão, pagou para ver seu destino refletido na bola de cristal.
Até o pároco da igreja se mostrou interessado a ajudar. Mas ele ficou irritado com os pensamentos dela. Levantou-se rápido, sacudiu a batina, deu com os ombros e a deixou lá, sozinha. No silêncio de sua solidão ela encontrou Deus.
Um pouco diferente do que haviam lhe falado. Com ele não precisava usar roupa certa, falar com respeito. Até o xingava e fazia gestos não educados perto dele. Ele a entendia. Encheu-se de graça no encontro consiga mesma. Decidiu divulgar, avisar que o céu não era nada daquilo que pensavam. Ninguém lhe deu ouvidos.
Olhou a rua, olhou as pessoas que passavam por ali. Fitou o seu vestido, o vento que carregava seus cabelos. Encarou suas mãos, seus pés. Decorou as cores do seu esmalte e o tamanho das suas unhas. Passou a mão no rosto para sentir sua pele, suas marcas ainda joviais. Reparou no seu próprio andar, em cada movimento que fazia enquanto voltava para casa. Quis ter certeza de que não era delírio. Fotografou o momento de sua libertação e achou que até a brisa que lhe batia não era mais a mesma.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Não quero mais que isso acabe

Deu três beliscões em sim mesma. Não era sonho. Ele estava ali, mesmo. Respirando lento, olhos fechados. E ela subia e descia, de acordo com a respiração dele, que a tinha envolvido nos braços, colocado-a junto ao seu peito.
Ela gostava do ritmo de sua respiração e entre uma subida e outra, sorria de canto. O silêncio quebrado pela respiração a impedia de dormir, assim como as cores que enxergava quando ele estava por perto. Queria absorver aquele momento, consumi-lo integralmente até a hora da partida.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Ciúme

Teresa: Estou encantada.
Maria: Com o pia?
Teresa: Sim.
Maria: Vou vê-lo no orkut.
...

Maria: Não se encante por ele.
Teresa: Por quê?
Maria: Ele tem milhões de recados de mulheres, você não sobreviveria.


sábado, 3 de julho de 2010

Martini Seco

16:50, julho. Inverno, mesmo em Campo Mourão. Casa fria.
- Larissa, você não está com frio?
- Não, mãe.
Chega perto para ver se não estou com febre. É raro eu ficar sem blusa em casa.
- Mãe, acabei de tomar um copo de Martini.
- Sem almoço, assim, no meio da tarde?
- Uhum.
- Você faz tudo errado, tudo errado, Larissa. Martini se toma acompanhada. Vou pegar mais para a gente.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Dança do tempo

Estava pensando em comprar um carro, não porque queria, porque era um jeito de guardar a grana. Dinheiro na mão é vendaval, mesmo. Tinha aprendido. Mas, quando olhou o anúncio do apartamento, seus planos mudaram. Foi sozinha lá ver. Era pequenininho. Do jeito que tinha pensado que fosse quando terminou de ler o anúncio. Na medida certa para duas pessoas, talvez mais uma criança também. Como era sozinha, o tamanho era perfeito.
Ficou imaginando sua vida ali, naquelas quatro paredes. Ela dona de sua casa, que além dos dois quartos, tinha cozinha, lavanderia e uma sala e copa, juntas, no mesmo ambiente. O banheiro era minúsculo, mas, para que tão grande?Pensou. Talvez não fosse a hora certa.
Olhou pela última vez o imóvel e desejou intensamente ter aquele metro quadrado. Estranha foi a vontade de mergulhar ali dentro. De se ver sozinha ali com o que tinha: meia dúzia de objetos pessoais, um computador antigo com mesa e cadeira, seus dois quadros recém adquiridos, o kusudama dado pela amiga, seu mural de fotos, seus livros, filmes e milhares de blocos de anotações. Por que não?

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Melhor assim

Não que não quisesse gostar do melhor amigo, é que quando o conheceu já estava apaixonada. Então vieram os namoros e um amor emendado no outro. E tinha essa mania de não se envolver com amigos. Criou essa regra e nunca a descumpria. Hoje acredita que inventou esse pretexto para não ser feliz de verdade. Mas, foi escolha dela...

Ele sempre a presenteava e ela retribuía, talvez por isso ele acreditava que houvesse alguma coisa e que cedo ou tarde essa coisa os uniria. Enganou-se. Não havia nada, nada da parte dela, que insistia em se perder em braços que não eram os dele.
Ele, mesmo transbordando de amor, nunca se declarou, deixava sempre para depois e depois, depois. Contudo, todos sabiam, até o pai dele. Fazia visitas ao pai e a levava junto. Os três passavam horas falando da vida, depois iam embora, ela para a casa dela e ele para casa dele. Durou mais de uma década.
Cansada do silêncio, atirou todas as palavras nele. Adjetivos, verbos, consoantes, frases inteiras, pela metade. Ele não a olhava nos olhos até pronunciar o primeiro palavrão. E a partir daí quem falou foi ele. Contou o que sentia, a forma como sentia.
Pediu desculpas, não adiantou. Ela o magoou. Machucou-o com a intenção de que ele seguisse seu rumo, que não se iludisse. Deu certo. Encontrou-o recentemente de mãos dadas, nunca o tinha visto de mãos dadas. Encheu-se de alegria e, mesmo sem se cumprimentarem, desejou que ele fosse feliz com quem estivesse.
De vez em quando se pergunta de quem foi a culpa e tenta achar os porquês que os impede de conversar. Não encontra culpados, não encontra porquês, só sabe que tinha de ser assim.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Tango

Ele olha para a foto e pergunta: Tia quem que tá do cheu lado? Eu olho para a foto que ele aponta. É o dançador de tango, respondo. Cheu amigo? É, ele brinca de dançar tango comigo. Tango? Que que é tango, tia? Tango é uma dança. Tantantantan. Tantantantan, cantarolo. Foi na Aguentina, foi? Aham, isso mesmo. Pego ele no colo e começamos a rodopiar pela casa ao som de minha própria voz, desafinada e sem ritmo.Tantantantan. Tantantantan. Ele ri. Mais, mais, pede. Canso. No chão, antes de entrar no carro para partir para a escola ele grita: Papaiiiii, danchei tango. Meu irmão o parabeniza. No caminho, ele canta o tantantan. Eu ao volante, ele no banco de trás. Tia, vamos dancha mais vamos? A hora que parar o carro, afirmo. Tá bom, concorda. Estaciono o carro, tiro a mochila e ele desce junto. Pego-o no colo e pergunto: Vamos dançar tango? Ele fica vermelho, se espreme, quase que querendo sumir, antes que eu faça qualquer movimento dançante. Não. Por que? Questiono. Aqui não tia, me adverte. Na fente da escolinha, não. Enzo, Al Pacino não teria me dito não. Mas eu falo.

sábado, 12 de junho de 2010

Que amor era esse?

Encontraram-se na estação de trem de uma cidadezinha qualquer. Sabiam que se cruzariam, um dia, mas não sabiam onde, quando, como. Foi depois de 5 anos separados, 5 anos sem conversa, 5 anos sem olhares, 5 anos sem amor.
O encontro estranho e inusitado provocou sensações incomodas em ambos, que não sabiam como reagir, principalmente ele, que, mergulhado em carência, há poucos dias tinha mandado uma mensagem para o celular dela. E ela não tinha respondido. A indiferença era o pior castigo para quem era tão orgulhoso e crente de seus “poderes” de sedução. Machucava, até.
Como não podiam evitar o encontro, visto que o mesmo já tinha se dado, ela foi até ele. Cumprimentou com um abraço sem graça e um beijo na bochecha. Achou estranho aquilo, aquele abraço sem vontade e aquele beijo sem gosto em quem, no passado, dava abraços apertados e beijos molhados. Adorava beijar aquela boca, ver aquele sorriso, sentir aquele cheiro. O mundo realmente gira e o tempo, definitivamente, é o melhor remédio, pensou.
Ele, sem jeito, mecanicamente a abraçou e retribuiu o beijo não molhado. Enquanto ela disparava perguntas e se mostrava até que interessada no que ele andava fazendo, ele se perguntava como tinha a deixado partir. Questionava o porquê de sua poligamia, se na maior parte do tempo, ela, somente ela, bastava. Queria ter sido menos grosso, menos fraco, menos imaturo. Eram 5 anos sem se ver, sem se tocar, mas ele sempre lembrava dela.
Constantemente mandava uma mensagem ou outra, mexia no seu orkut, enviava e-mails gigantescos, ligava. Era raro ela atender e quando atendia conversavam rápido, porque ele notava sua voz demasiadamente faceira, sua risada gostosa. Então era breve, pois sem ele, ela era mais feliz. E ela sabia que sua voz entregava o seu entusiasmo, sabia que isso o perturbava. Sentia-se no controle da situação, ela que havia se doado integralmente à paixão, ela que não enxergou mais ninguém por causa dele.
Agora era diferente. Os anos que passaram juntos tinham sido arquivados em seu coração. Chegou a pensar que nunca mais amaria, que nunca mais se envolveria com ninguém. Errou, vieram outros amores, outras dores. Era um ciclo repetitivo e continuo em sua vida.
Na estação, notou que ele não a queria ali. Jamais respondeu suas mensagens, seus e-mails. Há dois dias tinha enviado a ela uma mensagem de suplicio que também não obteve resposta. Quando atendia suas ligações era porque o número não era identificado, e ele sabia disso, sentia o desprezo.
Despediram-se. Ele aliviado, pois não sabia levar um fora, poucas mulheres lhe diziam não. Ela satisfeita, porque, de fato, ele não fazia mais parte dela. Agradeceu aos deuses e ao acaso, sentiu-se abençoada por não passar o Dia dos Namorados com ele. De noite, pediu vinho e brindou o amor com as amigas. Tinha uma capacidade de amar e desamar quantas vezes quisesse, quantos homens viessem, mesmo não sendo ele.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Marte e Saturno

Gostava dos homens devido à beleza. Sobretudo, por causa da grana ou do status que os mesmos carregavam e possuíam. Não entendia as relações entre classes e etnias diferentes, mesmo não se intitulando preconceituosa. Acreditava que tudo era uma questão de combinar ou não. Casais deveriam ter certa harmonia ao serem observados, como sapatos e roupas, bolsas e acessórios ou quadros e paredes.
Caçoava, sem maldade, as combinações que a amiga fazia. Tirava sarro porque, em sua mente, beleza, status e dinheiro eram fundamentais. E amava, amava mesmo, desde que tivessem tais requisitos. Quando via a amiga apaixonada por quem não tinha nada disso, não entendia. Decepcionava-se e rezava para a paixão logo passar. Passava, mas os amores da amiga sempre eram destituídos dos requisitos.
Também achava tosco andar de ônibus, reclamava do cheiro, das pessoas, de tudo. Achava-se superior a tudo aquilo, então desfrutava de seu carro importado, do conforto do seu conversível, do cheiro do seu perfume pago em dólares. E, algumas vezes, quando o pai achava que ela estava abusando, um motorista a acompanhava nos passeios, nas viagens, nas noitadas. Mesmo com tanto luxo, continuava convivendo com a amiga que valorizava a diferença, e, paradoxalmente, a igualdade.
Tudo bem, ela não compreendia aquela vida, achava medíocre demais, mesmo sem nunca ter confessado. Contudo, ambas gostavam da companhia da outra. Posto de lado as diferenças, havia as risadas em conjunto e, principalmente, a troca de experiências. A amiga que não tinha tanto dinheiro assim, não chegava a ser pobre, andava de busão e tinha concluído faculdade tal como ela - talvez fosse mais inteligente, pois lia mais, procurava mais. Sabia mais.
Enquanto se preocupava com o silicone, a outra falava sobre o livro que estava produzindo, sobre as diferenças grotescas que imperavam na sociedade. Discutia política mesmo não entendendo nada, mesmo que sua família não fosse de tal autarquia. Parava de pensar na quantidade de ml de suas próteses e se lembrava que seu pai, governador do estado, nunca debatera com ela a respeito daquilo que a amiga falava. Então, achou que certo era seu pai, que pouco se importava com tamanhas diferenças.
Elas tinham ido aos mesmos lugares. Uma a procura de aventuras, a outra, para ter fotos e assuntos nas rodas da alta sociedade. Uma ficava em hotéis de luxo e andava pelas ruas do estrangeiro de automóvel particular. A outra usava transporte coletivo, pousava em casas de conhecidos, amigos que fazia por onde passava. Elas não se julgavam, cientes de que eram de planetas diferentes.
O que satisfazia uma não satisfazia a outra, tudo era uma questão de opção. Não sabiam quem era a certa, quem era a errada. Poderiam ser as duas certas, as duas erradas. Talvez não houvesse certo e errado. Nunca saberiam. Uma jamais desejou ser a outra. Ideologia.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Era uma casa muito engraçada

O amigo ligou. Disse que tinham, enfim, comprado uma casa. E, o melhor, foi no leilão, economizaram horrores e tinham nas mãos a chave dos sonhos. Eles se casariam dali dois meses. Sorte.
O amigo insistiu para que conhecesse a nova futura residência. Falou dos apuros, dos compromissos, do pouco tempo, mas mesmo assim, topou. Foi lá ver a casa, que tinha teto mas não tinha nada.
O amigo empolgado foi abrindo a porta da frente que dava para a sala, era uma sala gostosa, ampla. Cabia sofá, estante, mesa, cadeiras, almofadadas pelo tapete e a rede do qual o amigo não abriria mão. A rede que já tinha sido motivo de briga entre ele e a mulher. Ela achava brega. No fim, o amigo venceu. Eles teriam uma rede na sala.
Enquanto o amigo disparava os planos do casal, da mobília, da decoração e de possíveis reformas, ele adentrava pela casa. Nela via a ruptura. Com o amigo morando ali nada mais seria a mesma coisa e toda coisa seria a mesma coisa.
Lembrou de todas as peladas que jogaram juntos, dos passes para o gol, dos tombos de falta, da cerveja depois da bola. Das viagens que fizeram juntos tinha as fotos na memória. Andando pelo corredor da casa vazia essas fotografias apareciam como slides. As festas de faculdade também vieram à tona quando entrou na cozinha.
Jogavam truco na mesa gasta que sua avó tinha dado para compor a mobília da república. E, agora, o amigo falava de cozinha planejada. Partidas infindáveis de truco não rolariam por ali. A mulher do amigo não gostava de gritos, de bagunça. Reclamaria de tudo e de todos até convencê-lo de que ao invés do truco poderiam jogar tranca, canastra, pife. Chata.
Não entendia aquele amor cego-surdo-mudo do amigo, que se apaixonou por aquela que torcia o nariz para a rede na sala, que não gostava de truco, que insistia para que ele ficasse em casa. Sabia que falar a respeito era em vão. Aceitou a formação daquele casal nada composto e até achou bacana quando o amigo comprou a aliança de noivado para ela.
Seguindo os ecos do amigo que ressoavam pela casa foi parar no quarto do casal. Ele estava lá, disparando planos, conferindo a estrutura, medindo paredes, verificando a janela. Pediu sobre a posição da cama, ele não quis opinar. Não era necessário enxergar para constatar a felicidade do amigo, seus timbres vocais denunciavam seu entusiasmo. Denunciavam a sua satisfação.
A casa era apenas uma desculpa. A residência de qual o amigo falava não tinha paredes de concreto e jamais necessitaria pinturas. Nela, mesmo chata, ele tinha encontrado um lar. Sentiu uma pontada de inveja. Quis também um quarto de casal.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Baseado em fatos surreais

De volta à cidade grande, resolveu, apenas por curiosidade, pois não havia necessidade de pegar o metrô, passar pela escada da estação de onde tinha visto a velha albina. Lá estava ela com os cabelos, talvez, um pouco maior do que da primeira vez que a avistou. Só os cabelos mudaram, mesmo que permanecessem ralos. As mesmas roupas, o mesmo semblante, o mesmo olhar distante e intacto continuavam nela.
Ainda parecia estátua, não tão macabra como antes. A gente se acostuma com o que vê todo dia, por isso a idosa insana já não lhe causava tanto estranhamento. A figura da velha se reconstituía em sua mente, até acreditou que os predicativos que atribuía a ela eram sacanas demais. Velha, macabra, insana. A mulher vivida com as experiências tatuadas pelo corpo que carecia de cor, de carne, de brilho, talvez não fosse nada daquilo que pensara.
Um amigo lhe deu a dica. Falou que ela poderia ser como a moça da canção mexicana. Cogitou a ideia. Quiçá realmente assim fosse. A velha no tempo em que não tinha tantos anos assim conheceu um moço pelo qual se apaixonou e formaram a 1ª pessoa do plural. Ele gostava dela não ter melanina nenhuma, achava charmoso aquela branquidão toda que aliada ao seu jeito sem jeito ficava até sensual.
Durou um verão, quase que foi para o inverno, mas o rapaz teve que partir (ou mesmo fugir). Ele disse que retornava, que sua ausência duraria uma semana, uma e meia, no máximo. Ela prometeu que durante a espera, todo dia iria à praça, em frente da igreja principal, o local do primeiro beijo do casal, onde se colocaria a pensar nele, nos dois. A moça achou bonita a promessa e a cumpriu.
Cumpriu para a toda a vida. Passou dias a espera do seu homem que sempre tardava a chegar. Passou uma semana, uma semana e meia, três meses, um ano. Vários anos. A cidade cresceu, a igreja foi cercada, passou por inúmeras restaurações e ninguém mais reza lá. Só visita. A praça virou lugar de gente de tudo quanto é tipo, por ali passa todo mundo o dia todo a toda hora. Tem bar, lanchonete, comércio, ambulantes, entrada e saída de metrô. Não é mais praça.
É na saída do metrô que ela se posta. Bêbada de amor jamais saiu dali, era ali o local do primeiro beijo. Tudo havia mudado, mas ela sabia que era ali, pois acompanhou todas as reformas. E como tinha prometido voltava ao local. Até que chegou o tempo que não mais saiu dali.
Fica que nem estátua, olhando para o nada. Ainda espera que aconteça algo, que o moço volte. A vizinhança diz que era bonita, mesmo sem cor. Que sorria fácil, pensava ligeiro. Aos poucos ficou gagá, garantem. Agora pensa lento, quando pensa.
Sem querer,em seus devaneios, acabou construindo a história da velha albina. Achou que um tanto de amor, de ilusão, dessas coisas que todo mundo acha graça, amenizaria o presente da velha, da qual ninguém sabe o passado, mas que é fácil imaginar o futuro. Resolveu andar de metrô, passear um pouco pela metrópole.

domingo, 23 de maio de 2010

A velha albina

O império de edifícios é bonito, mas polui a vista. São prédios e prédios e prédios. Mais prédios. As casas foram engolidas. E o comércio também reina. São bares, lanchonetes, lojas dos mais variados artigos. Vendedores ambulantes de fruta, biscoito de polvilho, bala, chicletes e quinquilharias. Nada orna, mas tudo junto e misturado até que possuem certa beleza, escondida, mas há.
Outra coisa chata da grande metrópole é a neurose. A preocupação constante que se deve ter com as bolsas, com a carteira, com o celular. O desassossego é de todos, até as pombas gordas são inquietas. Atentas, planejam a cada segundo um voo certeiro. É nesses voos que elas roubam a comida, que pode estar na mão, na mesa do bar, no chão. Até pomba rouba em cidade grande. Deveria haver um genocídio de pombas, pensa.
Gosta de andar de metrô, coisa de caipira. Mas, gosta. Foi na saída do metrô que encontrou a velha albina, que repousava na mureta da escada. Por dois dias seguidos a velha estava lá, parecia até fazer parte da decoração da calçada. Quase que não se mexia, dava até a entender que era estátua. Uma estátua macabra, de mau gosto, mas estátua. Era estranho se deparar com a velha albina, a falta de melanina causa estranhamento. O olho rosado choca, talvez por isso os albinos tivessem parte com o demo, era assim que pensavam na idade média.
Cabelos curtos e ralos alterando da cor branca à amarela. Saia e blusa de cores neutras para não contrastar com a falta de cor da pele, enrugadíssima. Com a mesma roupa, na mesma pose. Quase mendiga, era mais certo que fosse. A velha albina provoca quem por ela passa, provoca sem dizer nada, sem mostrar nada. Provoca com seus movimentos suaves. Parece louca. Uma insana, somente uma idosa insana sentaria na mureta, permanecendo estática na maior parte do tempo, enquanto zilhões de pernas passam por ali.
A velha albina pode não ter mais memória boa, deve embaralhar-se. Linearidade já não deve fazer parte da sua cabeça, deve ter flash back constantes, pode não ter família, pode ter sido esquecida. Vive no passado. Não sabe quem é. De fato.
Resolve ignorar a velha da mureta, porque depois dela tem o menino descalço com os dentes podres pedindo esmola, tem o negro fedido dormindo junto com três cachorros sarnentos, tem dois jovens fazendo a refeição no lixo, catando o que sobrou do almoço de alguém. Caraca, tem um pedaço de bife aqui. Vibram. Ainda, depois deles têm as putas da esquina, do meio da rua, da quadra inteira. Tem policial batendo em gente decente, homens armados com fuzil, que ninguém sabe se vai ser usado para o bem ou para o mal. Um dia na cidade grande.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Para as enroladas se desenrolarem

Desejei, por muito tempo, que o tal do amor fosse explicado numa fórmula matemática. De forma clara e objetiva. Ou podia ser também sentido como se sente os poemas. De verso em verso, uma sensação. Mas, o amor não é simples assim, gosta de ser complicado. Assim, um mais um nunca são dois. Assim, é multifacetado. Para senti-lo, sente de tudo. Até doer demais. Quando dói demais, é a hora de partir, de trocar de amor*. Permita-se. E abafa o insuportável mau cheiro da memória - como Drummond aconselhou.

*Bom seria se existisse um liquido, desses que se encomenda a quem tem parte com o diabo ou parte com o céu. Feita a encomenda, o liquido seria doado aos conhecidos que sofrem de amor, principalmente às amigas que não possuem talento algum para amar (e desamar também).

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Ao meu pedaço de céu

Quando pequena, lembro de me esconder por entre suas pernas. Tímida, meus pequenos braços entrelaçavam suas coxas quando visitávamos parentes ou íamos a festas. Desde novinha escutei dos outros a nossa semelhança. Hoje, nossa similaridade aumentou, somos mais parecidas. Mais mãe, mais filha.
Da infância para adolescência, da adolescência para a maturidade. Em todas as fases a necessidade de uma absorver a presença da outra foi/é recíproca. Por isso a saudade doía tanto na época da faculdade, quando quilômetros nos separavam. A falta que uma sentia da outra era suprimida às vezes. A grana era curta o que dificultava as visitas não programadas, então, limitávamo-nos aos telefonemas, aos e-mails, às mensagens no celular. Minha mãe conseguiu o que pouquíssimas pessoas conseguem: era presente mesmo ausente.
Quando os ventos do destino me visitaram e me sopraram de novo para casa, varreram para longe a saudade que nos corroía. De volta ao lar doce lar, onde me encontro, desfruto da companhia dela. Todo dia.
Dividimos segredos, delírios, dissabores, sorrisos e, principalmente, o peso dos problemas – um tanto para mim e outro para ela. Minha mãe, como tal, faz coisas típicas de mãe: planeja minuciosamente o almoço de domingo, pois gosta da família reunida em torno da mesa, comendo, bebendo, rindo e falando alto; reza para eu arrumar namorado; torce para eu ser sucesso profissional e me dá mil e um conselhos quando pego a mala para viajar.
Talvez a cumplicidade seja a palavra mais adequada para traduzir a nossa relação, que é recheada de muito amor e uma dosagem extra de paciência – utilizada nos nossos momentos de desentendimento. Ela me chama de teimosa e eu disparo mil críticas. Passa. Dessas brigas raras, vem a certeza de que fomos feitas uma para outra.
Aos 25 anos não me escondo mais por entre suas pernas, porém ela continua sendo meu refugio. É no seu cheiro que encontro a tranquilidade e o aconchego. É quando inalo o seu perfume , aquele que só os (poucos) filhos identificam, que o meu mundo fica mais azul. Minha mãe, minha vida.