sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Uma prece para você

Hoje, o carro virou navio e todo o resto que se encontrava fora dele, o oceano, o rio, o lago. Água. E lá fora estavam os jacarés, os tubarões, os peixes. Dentro do automóvel, ou melhor, do navio, eu, a capitã, você, o passageiro, e a sereia, a nossa convidada, tal como você intitulou.
No nosso trajeto desviamos de ondas gigantes, de estrelas do mar, dos peixes, dos jacarés e até de uma bruxa que apareceu. A sereia, mesmo muda, participava de nossas brincadeiras e você aproveitou para fazer inúmeras perguntas a ela. Até sentou no colo dela, constatando que a cauda é mole e que não estava molhada, foi o que você me disse.
Envolvida no seu mundo imaginário, de contos de fada, de fantasias inusitadas, faço uma prece. Uma prece para que você demore a crescer, para que o seu sorriso, que eu vejo no retrovisor, seja eterno.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Que o dia pouse na minha cabeça

O reflexo do espelho parecia diferente. Sua barba comprida indicava que as transformações não ocorreram de uma hora para a outra, há tempos se encontrava naquele estado. Transformado.
As mãos estavam no lugar dos pés e vice-versa. A perna esquerda estava do lado direito. E com seus pés no lugar das mãos podia alisar as suas costas que agora se encontravam onde era o peito. A cabeça, mesmo zonza, ainda estava no mesmo lugar. Entretanto, o mundo, para ele, mesmo em pé, estava de ponta cabeça.
O que via não correspondia à realidade de outrora. Até o quarto que vivia bagunçado, agora estava arrumado. O celular que não tocava, toca incenssantemente. As músicas que eram escolhidas, não são mais as preferidas. A comida de todo dia se tornou a refeição do fim de semana.E até água que bebeu tinha um gosto que não era dela, um sabor desconhecido.
Uma raiva súbita lhe tomou a alma. Não se adaptaria, concluiu. Mas também não tinha certeza daquilo que realmente queria. Respirou fundo. Desejou que o dia pousasse em sua cabeça para que clareasse sua vida. Pronto, sabia o que queria.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Microconto de amor

Fui eu quem te avistei. Então, no fim e no fundo, eu sempre soube que a culpa era minha. Sem final feliz para mim e para você. Ou não. Quiçá seja feliz para mim e para você. Para sempre.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Dona do tempo

Em uma de nossas conversas, de papos duradouros, dos quais estendemos o máximo que podemos, você me disse que o que mais desejava era ser dono do seu próprio tempo. No início fiquei sem entender, pois mora sozinho, não tem família, é dono de si mesmo.
Como então não seria proprietário de suas, só suas, horas? Você me explicou depois. Era, e ainda é, o trabalho que lhe impede de ser, realmente, livre. Afinal, é ele que lhe acorda, que lhe diz quando deve almoçar, que lhe dá folga. É o trabalho que lhe proporciona até seu ócio. Maldito trabalho. Confabulamos juntos sobre o assunto, enumerando as mil e uma coisas a mais que nos impõem horários.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos, disse o poeta. Eu cansei antes. Mais do que nunca acordei com a vontade de ter a minha liberdade temporal. Levantei pronta para reivindicar meus direitos sobre o meu, só meu, tempo. Você me ajuda? Podíamos começar quebrando os relógios e todos os outros tipos de marcadores de tempo, que tal?

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O maestro

Enquanto o menino de menos de sete anos insiste para o pai comprar o balão azul, a banda municipal toca. Ao mesmo tempo em que o casal de namorados escolhe a melhor e maior maçã do amor, que a mãe levanta a menina que acabou de cair, que o malandro ensaia sua próxima cantada, que o prefeito cumprimenta o povo, a banda municipal passa.
E entre conversas, gritos, o barulho dos brinquedos e outros sons diversos, a banda municipal se silencia. Ninguém a escuta.O som da flauta doce, aliado ao reco-reco, trompete, trombone e saxofone, já não encanta mais a plateia. Para a tristeza do maestro, a banda toca para o nada. E a tristeza do maestro só não é maior, ou talvez seja maior, porque ele esqueceu tudo. Tudo.
O filho explica que o homem que rege a banda não sabe mais quem é, esqueceu do nome, do sobrenome. Não lembra que casou, que separou, casou de novo e teve filhos. Doze filhos. Dos netos? Ele não conheceu nem o primeiro. O filho do maestro fala, com a voz sofrida, de quem procura uma explicação, que a única coisa que restou da memória de seu pai foi a música.
As partituras são as únicas lembranças do passado. Tamanha é a paixão do maestro pela banda, pelos instrumentos que ordena, pelos músicos que comanda. Músicos companheiros e amigos de longa data. Entretanto, da amizade o maestro não se recorda. A sina dele é lembrar só da melodia.
O filho dele não entende o porquê da lembrança ser só as partituras, conta que era um bom pai, um bom marido. Um homem que gostava de reunir a família e se sentir cheio dela, dos amigos, das pessoas. Então, o filho recorda o tanto que o pai ensaiava, o tanto que se dedicava à banda. Talvez fosse a dedicação? Afirma, mesmo que indagando as recordações do pai.
E vê-lo assim, no meio da praça, tocando para o nada, entristece o filho do maestro. Porque ele sabe que o pai já foi prestigiado, ele sabe que teve brilho, que tocou até para o presidente da república em visita ao município. Mas o pai não sabe. O Alzheimer não deixa o maestro saber que um dia o público pediu bis.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Pedido de casamento

Eu coloco o relógio para despertar e você me acorda. Você arruma a cama e eu guardo a roupa espalhada pelo quarto. O café da manhã? Pode preparar que eu já lavo a louça. Você pode me levar de carro até o trabalho, mas eu posso te levar também. Tanto faz, o que for mais prático. Revezamos. É melhor comermos fora ao meio dia. Não demore para ir me buscar, detesto esperar! E por detestar a espera e temer a demora, já estou na rua, te espero no bar. Na volta para casa trocamos algumas juras com hálito etílico. Dividimos a conta de luz e de telefone. Juntos podemos enfrentar a rotina, falar mal dos vizinhos e dormir de conchinha. Brigar. E isso pode ser todo dia.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Ônibus 227

Eu a aguardo ansiosamente pela manhã. De tanto observá-la sei de cor as pintinhas do seu pescoço. São cinco, que parecem descer em fila à sua saboneteira. Aliás, é na sua saboneteira que me perco, na sua pele branca ávida, por onde parte de seus cabelos longos repousam. Cabelos cor de cobre. É cobre que é avermelhado? Sou péssimo com essa coisa de denominar cores. E quantas cores você usa! Todas. Gosto mais do seu vestido branco que você costuma usar na sexta-feira, não toda sexta-feira, mas às sextas-feiras. Você fica tão linda. Imagino que na sexta-feira seja o dia de todos irem ao trabalho com roupas mais despojadas, pois nos demais dias você está elegante, vestida com um terninho ou algo do tipo. Sei também que na sexta não é sua folga. É, meu bem, eu te acompanho até a porta da sua empresa, mas você não sabe e, quiçá, nunca irá saber. Todos os dias são assim. E isso acontece há um ano e quase quatro meses. É tempo, eu sei. Eu lembro de você ainda morena, quando seus cabelos ainda não eram avermelhados. Foi a primeira vez que a encontrei. Perdi o horário do ônibus, tive que recorrer a outra linha. Foi nessa linha que você apareceu e eu permaneci. Ando duas quadras a mais, por você. Porque se eu pegar o ônibus que passa em frente a minha casa eu não a vejo, eu posso te perder. Prefiro andar essas duas quadras e encontrá-la todos os dias, incluindo-a na minha rotina, nessa minha vidinha sem tanta graça. A graça é você. Que me despertar, que sentada num banco qualquer a olhar para rua, me fascina. Já te contei que fucei nas suas compras para ver o que costuma levar para casa? Não se preocupe, não mexi em nada do que você carregava. Mas meus olhos entraram na sua sacola de mercado e vasculharam seus pertences. Tinha doces, suco natural, um pacote pequeno de pão, um pouco de frutas e o absorvente. Imaginei que estivesse naqueles dias. Até isso eu sei de você. Não precisa ficar assustada, eu não vi nada demais. No outro dia bisbilhotei sua sacola novamente, notei que havia ração e conclui que você tem um cachorro em casa, provavelmente. Um dia pode ser que eu saiba o nome dele...Sei também que gosta de filmes e música. Posso até adivinhar os filmes que assistiu no último fim de semana. Não, não lhe segui até a locadora. Mais uma vez, foi sua sacola que a denunciou. Você também abriu os DVDs, como quem confere o que acabou de escolher. Então eu, sem querer, sei quais são os filmes. Gostei dos filmes. Gosto quando você escuta música. De vez em quando a vejo com seu Ipod, batendo os pés, batucando as mãos. Você cantarola em silêncio aquilo que escuta enquanto observa o nosso trajeto pela janela lateral do transporte coletivo. Falei nosso trajeto, não é mesmo? É. Já te inclui na minha vida. Falta só você saber.