terça-feira, 31 de agosto de 2010

Mais um bilhete

31 de agosto de 2009.

Eu me sento para lhe escrever. São textos estilo cartas, mas não chegam a ser cartas, já que não possuem tal estrutura. São textos, onde eu sou o remetente e você o destino. Destino. Meus textos não chegam ao meu destino, porque eu não os envio. Estão empilhados na minha estante, no meu quarto. Alguns estão estocados no meu mundo particular, encravados no meu peito, na minha mente. É preciso lapidar esses textos antes que eu os coloque junto aos demais. Talvez eu faça isso. Ou não. Porque não é bom saber tudo. O que acha disso? Fiquei pensando a respeito e conclui que certos verbos e substantivos não devem ultrapassar a barreira do pensamento. Melhor assim. Eu não conto tudo, confesso. Mas se você soubesse o que está ali na prateleira viria correndo para cá. Para mim. Eu consigo imaginar você desdobrando os papéis, alguns já amarelados e outros nem amassados, recentemente empilhados. Suas mãos ligeiramente ágeis escolhendo um texto ao invés do outro, tentando me absorver o mais rápido possível. Eu o vejo impregnado dos meus textos, das minhas histórias, das minhas lembranças, na tentativa de conter o tempo. Na tentativa de viver um pouco daquilo que eu conto, comigo. Os bilhetes estão a sua espera. Você poderia voltar antes que eles não caibam mais no meu quarto. Na estante já não tem mais lugar...

Cotas e inclusão social

E como ele é? É autista, disse, como quem responde onde mora. Naturalmente. Ficou surpresa. Sua cara de espanto não escondia o susto pela resposta dada. Tentou disfarçar e não quis saber como era um relacionamento com um autista, não que tivesse preconceito ou algo do tipo, era diferente demais. Esquisito, até. Mil pontos de interrogação a cutucaram. Passado alguns segundos, seu rosto não mais assustado, se acostumou com a ideia. Afinal, uma outra amiga já tinha se envolvido com um surdo-mudo, então, por que não um autista? Pensou nas cotas, nos programas de inclusão social. Depois riram. Riram juntas do mal entendido.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O triste fim de Raquel

Intitulava-se fiel até aparecer a primeira calça masculina à sua frente. Era tomada pelo instinto quando sentia o cheiro de machos. Em presença deles, a fidelidade desaparecia. Podia ser namorado, amante, noivo, marido, irmão de outra. Não importava, desde que tivesse o X e Y, bastava. Ao fim, depois de sair com o padrasto, ficou sozinha, à mercê do primeiro que aparecesse. Ninguém apareceu.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Um quê a menos

Eu sei o que aconteceu, você achou que eu era especial. Me colocou no altar, na bolha de cristal. Me venerou. Quase acreditou na perfeição que seus olhos apontavam. Cegou-se frente às qualidades que seu coração me destinava. E me ver tão comum, tão real e cheia de imperfeições quanto qualquer outra pessoa, magoa, ofende, fere. Fere você. Fere a mim. Não corresponder as suas expectativas me machuca.Eu poderia ser mais. Poderia ser tudo aquilo que você deseja, mas não. Eu me limito a ser apenas eu mesma. Eu que não tenho um quê a mais, eu que sem brilho me faço fosca. Quase obscura. O que me conforta é que eu nunca menti, nunca me fiz do que não sou. Se você fechar os olhos e abri-los novamente vai ver que sempre fui assim: Um quê a menos, que jamais beirou a perfeição.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Zoá e o guarda-chuva

Antes de nascer seus pais já haviam comprado. Do lado da cama do hospital maternidade, por entres as várias flores que exalavam cheiro de manhã, lá estava o primeiro guarda-chuva de Zoá. Pequeno, tal como ela era quando veio ao mundo.
Seus pais sabiam da importância de se ter um guarda-chuva, dado à modernidade dos tempos, dado aos perigos do dia a dia, da imprevisível maldade alheia. Quando deu seus primeiros passos, sua mãe já começava a lhe ensinar: O guarda-chuva lhe protegerá das chuvas de traições, das tempestades de ilusões e, principalmente, dos tempos de cólera intensa. Também lhe guardará das garoas de decepção, dessas que chegam sempre sem avisar. Deve segurar o guarda-chuva firme, Zoá, falava a mãe enfaticamente.
A menina, ainda sem entender as letras, sorria. Mas nada de segurar firmemente o guarda-chuva. À medida que foi crescendo, seus pais foram lhe presenteando com guarda-chuvas de diferentes tamanhos, formatos, cores. Havia ainda os que além de guarda-chuva, poderiam ser usados como guarda-sol. Mesmo assim, nada seduzia a menina, que cresceu sem muitos cuidados.
Zoá tropeçava nos brinquedos, pegava gripe por andar descalça, brigava no colégio, desafiava os vizinhos. Fazia poses inusitadas, discordava, corria. E até a maturidade tomou chuva. Várias chuvas. E gostava dos pingos que lhe encharcavam. Sentia-se mais leve após as tempestades, mais livre após os tempos de cólera e muito mais fortalecida depois que as garoas cessavam.
Quando chovia os guarda-chuvas tomavam conta das ruas, lotavam as calçadas. Não se via rostos, não se enxergava pessoas. Todo mundo era um amontoado de guarda-chuvas, sem identidade, sem vida. Zoá se irritava. Não entendia o zelo das pessoas, a cautela para a hora da chuva. Pensou em contar seu segredo, em propagar o não uso do guarda-chuva. Desistiu. Existem dois tipos de pessoas: as que usam guarda-chuva e as que não usam. Zoá não usava guarda-chuva.

Dia especial

Quando acordou, ele ainda estava ali. Respiração lenta, corpo à mostra. Ao se levantar, poderia colocar duas xícaras em cima da mesa, colocar mais pó no café e fazer duas torradas. Tudo era o dobro. Até a felicidade que sentia.

domingo, 15 de agosto de 2010

Meu resumo

Chego atrasada na reunião. Não tem mais cadeiras, mas abrem espaço e arrumam uma para que eu sente. Sento. Escuto a conversa, pego o discurso pelo meio. De repente...
- Larissa se apresenta, todo mundo aqui já se apresentou.
O que eu falo? O que eu falo? Os olhares todos voltados para mim, odeio gente me olhando. Lá vai. Eu tenho 25 anos, medo de altura. Gosto de filmes, se quiserem podem me convidar para ir ao cinema ou para assistir em casa mesmo. Na infância eu me escondia atrás da perna da minha mãe, brincava de bonecas. Ia para a rua, onde brincava de esconde-esconde, passa anel, pega-pega e por aí vai. Fiz balé na adolescência, época em que ficou comprovada a minha falta de coordenação. Meu primeiro beijo foi sabor melão, frustrante para uma pessoa que odeia...melão. Chorei. Usei aliança de compromisso todas as vezes que namorei. Um par está jogando bola no campo de futebol do clube na frente de casa, o outro está no lixão da cidade – quando resolvi me purificar e joguei todas as coisas dele fora - e a outra foi devolvida por quem me deu. Poderia ter feito um pingente com elas, ok, hoje eu sei. Tinha fama de CDF no colégio, porque, além de usar óculos e sentar nas primeiras carteiras, gostava de tirar acima de 90, melhor se fosse 100. Me disseram que eu escrevia bem e eu, iludida, quis ser jornalista. Quando entrei na faculdade, deixei de me importar com números, em todos os campos do conhecimento e da vida. Exagerei desde então. Esqueci de falar: sempre fui grudada com a minha mãe. Gosto de cachorros, mas longe de mim, do meu quarto, da cozinha. Prefiro destilado do que cerveja. Evito beber demais, porque posso ficar sem coluna ou achar que sou a Gretchen. Prefiro calor ao invés de frio. Não gosto de demorar no mercado, de esperar, de passar frio. Já chorei porque esperei demais, já chorei porque tava frio demais. Sim, eu choro por coisas que eu não deveria chorar e não derramo uma lágrima em momentos em que deveria derramar. Não adiciono desconhecido no MSN e no Orkut. Tenho medo de estranhos, principalmente da internet. Tenho vontades que vem do nada e gosto de saná-las, quando não posso, fico irritada. Eu posso falar demasiadamente, sem vírgulas ou pontos, assim como posso ficar calada. Depende. Sou cautelosa na maioria das vezes, mas já peguei carona com um estranho no estrangeiro e já vim para casa de carona de caminhão junto com um amigo que tinha menos juízo que eu. Meu sonho era pegar carona de caminhão. Tenho sonhos estranhos. Me atrapalho ao mandar mensagem no celular e não atendo o passado. O que passou, passou. Tenho amigos de todos os tipos e tamanhos. Se pudesse guardava eles em potinhos e levava comigo para todos os lugares. Amo ser tia, e se eu soubesse que seria tão bom não teria feito drama em relação à denominação. Aliás, além de dramática, eu sou neurótica. Minhas idas aos consultórios médicos costumam ser engraçadas, principalmente se eu resolvo abrir os exames e fingir que sei tudo o que está escrito ali. Tenho mania de anotar tudo e perco todas as anotações. Já fui mais organizada, mais centrada, mais equilibrada. As pessoas costumam gostar das minhas histórias e se eu fosse mais desinibida até escreveria uma autobiografia que, quiçá, poderia me incluir na lista dos mais vendidos de algum jornal ou revista de prestígio. Não tenho carro porque sou ambientalista. Mentira. Confesso que não possuo bens no meu nome. E, quer saber, ainda não me importo muito com isso. Disseram que isso é falta de ambição e que pode não ser bom. Não sei. Afinal nunca quis ser rica, se quisesse teria feito alguma engenharia ou medicina. Não, acho que medicina não. Não tenho vontade de ter um analista, de por silicone ou de andar de salto o dia todo. Costumo não usar maquiagem e meu cabelo não é alisado. Eu poderia ser hippie, mas gosto de depilação, banho e algumas futilidades. Já pensei em fugir, várias vezes, e viver de amor. Sou viciada em shows e quando encontro alguém de quem sou fã, sou totalmente tiete. É tem isso também, sou expressiva, espontânea, transparente. Não quero ter filhos (mesmo que de vez em quando eu deseje um com pele e cabelos de negro mas com sardas e cor de cabelos de ruivo). Estou escrevendo um livro e já plantei uma árvore com o meu nome na Floresta Amazônica, era o que dizia o site. Ah, eu tenho mania de morder o canto da boca...Huuummm, eu já disse que às vezes me sinto perdida?
- Oi, meu nome é Larissa e eu tenho Orkut.
Resolvi simplificar. Todo mundo ri, enquanto eu digo mais umas três ou quatro palavras.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O rugido do leão

Manhã, precisamente 06:30.
Despertador.
Esfrego os olhos e...Soneca.
Bom dia. Agora nasceu um novo dia,Doutor Zezé. Bom dia, Dona Mariquinha.Bom dia, Doutor Zézinho...”
Toca o despertador, novamente.
E entre a escolha de me prolongar na cama ou acordar de vez, o rugido.
- Uarrrrr, Uarrrrr*.
- Nossa, o que é isso? É um leão?
- Eu chou o leão, papai. E volta a rugir.
- Uarrrr, Uarrr.
Acordo, pois entre ficar na cama e ver meu sobrinho se rastejando pela casa como se fosse um leão, o melhor é levantar para não perder a cena.
Acordar com sons de rugidos que pouco se assemelham ao rei da floresta, mesmo que ele tenha se esforçado para parecer, não tem preço.



*sou péssima com onomatopeias

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Vou te contar...

Quando estou com você, meus pés não ficam no chão. E essa coisa de ficar sem chão aconteceu na primeira vez que o vi. Foi no momento em que me rendi ao seu sorriso que voei, para longe. E mais distante eu fui quando eu me apaixonei por todo o seu resto.
Como não estou acostumada, me perco entre as nuvens, erro caminhos e estranho o céu. O céu que é mais vivo, mais intenso, mais azul. Então eu aceito um presente sem futuro, uma presença na ausência. E confesso que aceitar isso, para quem tinha os pés no chão, é difícil. Mais complicado ainda é me ver em espiral, eu que gosto tanto de linhas retas.
Entretanto, a sensação do vento batendo na cara, das pernas no ar, é boa. É gostosa. Você me mostra a leveza da vida e, mesmo longe, descomplica a minha rotina. Por isso essa vontade súbita e constante de lhe consumir. De absorver a sua presença.
Eu vejo cores em você. Cores que nem Almodóvar enxergaria, cores que eu e você, juntos, pintamos.

domingo, 8 de agosto de 2010

2º domingo de agosto

Ver você tão frágil me sensibiliza. Achava que nem sentiria tanta falta, achava que como somos água e óleo, melhor mesmo era cada um para seu lado. Mas a saudade nos transforma. Eu sinto sua falta e até penso em te ligar, às vezes te ligo outras não. Ainda não me acostumei com a gente longe mas mais perto.
Quando você desabafa, dizendo que nunca se sentiu tão sozinho, eu fico mal. Porque nessas horas eu queria te dar aquele abraço de pai e filha, desses que a gente teve tanto tempo para dar, mas nunca demos. A hora que você voltar a gente se abraça. Eu sei. Feliz dia dos pais.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Meu verão


Sentados no sofá, ele chega mais perto de seu ouvido. Você está de verão, mas eu estou de inverno, mesmo no verão, sussurra. Ela o escuta e pensa naquelas palavras que soaram como melodia. Pensou no que ouviu e repetia para si mesma. Você está de verão, mas eu estou de inverno, mesmo no verão. Você está de verão, mas eu estou de inverno, mesmo no verão. Você está de verão, mas eu estou de inverno, mesmo no verão. Entendeu o que ele quis dizer.
Ela sempre radiante, com o sorriso fácil, com seu vestido leve, cabelos ao vento. Com ela tudo tinha mais brilho e ela tinha ciência de tal dom. E ele, mais centrado, o máximo que fazia era sorrir de canto ou morder os lábios quando algo lhe agradava. Deixava a leveza e seu brilho guardados. Seus raios eram vistos só aos poucos, na intimidade, demonstrados de maneira discreta, quase invisível. Não era expressivo como ela. Talvez por isso ele acreditasse que o verão era ela e não ele.
Enganava-se. Para ela, ele é quem estava sempre no verão, porque transformava a melancolia em obra de arte, a tristeza em beleza. A rotina em filme, a vida em espetáculo. Antes de deixá-lo, quis que ele soubesse. Você não vê, mas o verão é você.
Foto: Pablo Accorinti, o verão.

Querendo o mundo

- Tia, quando eu queche vo pode me leva chozinho pra escolinha. Eu vo...eu vo diligi.
- Verdade, vai mesmo.
- Quando eu fica gandi vo pode...pode...
Olha para a rua, contempla-a, deseja-a.
- Vai poder, o quê?
- Vou pode anda na lua chozinho.
E volta a mirar a rua, que nem é tão grande assim, que acaba, logo ali, virando a esquina de casa.