sábado, 30 de outubro de 2010

Sem sorriso para o pão de queijo

Uma vontade enorme de continuar na cama enquanto o despertador anunciava que era necessário acordar. O domingo acabou. Não esperava muita coisa para uma segunda-feira. Levantou-se, foi fazer o café, como de praxe.
Antes de chegar à cozinha foi até a porta do quarto dos filhos. Toda manhã é assim, mesmo eles não estando mais ali. Não há mais brinquedos espalhados pelo chão ou roupas sujas jogadas atrás da porta. Desde que os filhos foram para a faculdade, os quartos permanecem intactos, organizados tal como nunca foram. Espia as camas arrumadas. Respira fundo, sente saudade. Vai terminar o café.
O marido sai do banho, ainda enrolado na toalha senta à mesa. Beija-a. Diz bom dia. Ela pergunta se ele teve uma boa noite. Responde que sim, pergunta do sono dela. Ela fala que foi bom. Mentem. Ambos dormiram mal. Depois de vinte anos de casado, permitem-se mentir um ao outro. Ela repara que o olhar dele está distante, parece pensativo. Mas não comenta.
Antes de sair para ir ao escritório, ele a mira na porta. Fica alguns segundos ali, observando-a. Ela repara. Acha estranho o beijo na testa, o abraço um pouco mais apertado do que o normal. Parece uma despedida, pensa. Esquece desses pormenores e começa a pintar mais um quadro em seu ateliê, que fica nos fundos da casa. Tem vários quadros e louças. Gosta da pintura, do artesanato. Têm clientes para atender, quadros para pendurar, visitas a fazer.
Tira a roupa manchada de tinta. Vai para o carro com duas encomendas para entregar. São pinturas frescas. Quadros já emoldurados, gritando por seus donos. Quer entregá-los o mais depressa possível. Atende duas ou três ligações pela manhã. Conversa com os filhos, fala com a mãe que mora em outra cidade. Almoça com alguns empresários que se interessaram pela sua arte. Sente-se orgulhosa, vai expor pela primeira vez.
Antes de retornar a casa, vai conferir as novidades do mercado. Quer cores novas, pincéis diferentes, texturas. Precisa de algumas telas também, de todos os tamanhos. Sai da loja com pilhas de sacolas. A cena é comum, acontece em todo começo de semana.
Passa na padaria, compra alguns pãezinhos, lembra de pegar a manteiga que acabou e escolhe um pão de queijo para agradar o marido. Está em casa novamente, de onde aguarda o sorriso dele. Porque é assim que ele chega todo o final de tarde, sorrindo. Naquela segunda-feira, ela não viu o sorriso. E nem nas outras segundas-feiras. E nem nos demais dias da semana. O pão de queijo ficou duro.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Seguindo conselhos

Guardou o vazio no bolso, como o aconselhararam. Olhou para o céu, supirou, foi ao cinema, essas coisas. E mesmo assim o vazio se transformou num buraco, de onde a tristeza e a angustia transbordavam. Agiu errado. Deveria ter posto o vazio num saco fechado, jogado-o longe. O bolso era perto demais.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Diálogo da semana

P1: Quer saber, vou virar biscate! É isso.
Meia hora depois...
P1: Se fosse há uns dois anos atrás, teria chorado.
P2: Por quê?
P1: Porque detesto ser invadida.
A roda inteira ri. Ser biscate não durou nem uma hora. Droga!

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

De uma solidão não esperada

Tinha mãe, pai, irmãos, avós, sobrinhos e sobrinhas. Cachorro. Não achava justo se sentir sozinha e até gostava de ficar só. Momentos ela e ela eram extremamente necessários. Essenciais à sua saúde mental e espiritual.
Da solidão que todos falavam, ela nunca tinha sentido. Embora sozinha, estava sempre acompanhada. Não tinha um milhão de amigos, mas tinha os melhores, com os quais podia contar para tudo, para o que fosse.
Os companheiros não eram tantos, porém não lhe faltavam. Podia escolher: aquele que dizia que ela era de perder o juízo ou o que afirmava que ela era a que mais beirava a perfeição. Tinham outros elogios, mas desses ela gostava mais.
Então chegou o ano novo. No meio dos fogos, das músicas, dos gritos entusiasmados, de 2009 dando adeus enquanto 2010 dizia oi, a solidão bateu. O silêncio, mesmo inexistente naquele momento, impregnou seu ser.
Sentiu um arrepiou frio que tomou conta de seu corpo até arrepiar a sua alma. Quando doeu na alma, entendeu do que se tratava. Mais um medo estava incluso em sua lista. Achou que fosse coisa de virada de ano, mas ficou.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Uma não-declaração de amor

É verdade, eu nunca tinha reparado, toda vez que o vejo, comento.
Meus comentários são os melhores, garanto. Comento com uma pessoa, no máximo duas. Falo do quanto você estava bonito, do quanto você é aquilo que eu gostaria de ter. Essa vontade aparece de vez em quando, em nossos encontros ou quando você me liga, manda mensagem. Estranho não? Porque nos conhecemos há muito tempo, há muito tempo mesmo!
Você me fala da sua vida, do que está fazendo, por onde anda. Eu conto da minha, da minha falta de planos. Daí me pergunta dos amores, tem uma curiosidade excessiva quanto a isso, e quando falo dos que encontrei ou que tentei viver, você ri. Ri porque normalmente eu me dou mal. Às vezes acho que até gosta disso.
Eu sei, você nunca se dá mal, porque tem um jeito único de se relacionar. Peculiar. Então me envolve nos seus braços, fala para eu me cuidar, beija minha testa. Me dirige um olhar que só eu e você entendemos o que significa. Eu fico com o seu perfume e com a certeza de que é para ser assim. Você para lá e eu para cá.

Quadrilha moderna

João pegava Teresa que pegava Raimundo que pegava Maria que pegava Joaquim que pegava Lili, que não amava ninguém, mas pegava todo mundo.
João foi para a Argentina casar com Raimundo. Teresa ficou com Joaquim, mas também é amante de Maria. Lili foi morar com o Fernando e depois casou com a Sabrina que não tinham entrado na história.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

E se não houvesse amanhã?

Foi para o hospital. Estava com febre, apenas. Não imaginava que a temperatura alta do seu corpo indicava seus últimos instantes. Pensou em resfriado, gripe, alguma virose. Os médicos não souberam dizer, o diagnóstico foi impreciso, várias patologias possíveis.
No momento em que partia, o telefone da sua casa tocava e seu cachorro latia incessantemente para a TV que não desligou. O caderno onde anotava as contas pagas estava aberto, tinha riscado a última prestação do carro. A cama ainda estava desfeita, a geladeira cheia, a lata de cerveja aberta. Tinha saído para voltar, mas acabou deixando, para sempre, a noiva, a família, os amigos. Além de planos inconclusos e desejos insaciáveis. Uma vida pela metade.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Quadro sem pintura, retrato sem moldura.

A aquarela dos meus olhos é que lhe deu cores. Cores que eu mesma pintei, que eu mesma mesclei. Você é desprovido de cores. Chega até ser nebuloso. E a névoa que o envolve é a cor da minha angustia por não notar tamanha obscuridade antes. Enquanto eu queria absorver a sua presença, você nem sequer notava a minha. Até os beijos e abraços eram limitados. Mas as palavras não. Sem saber o que falava foi falando sem parar. Palavras de bom gosto, dessas que o ouvido adora escutar. Das quais os olhos saltam ao ler. Como sou apaixonada pelas letras, por elas juntas carregando significados indescritíveis, apaixonei-me pelo seu falso retrato. Que eu mesma fotografei. Coisa de coração tolo, de quem se entrega por entregar. Eu inteira, você nem pela metade.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Previsíveis

Rolava um clima. Sabiam disso, mesmo que nenhum dos dois falasse. Não precisava. Os olhares não se calavam e eles mesmos, apesar de discretos, não escondiam. O dia em que tomou coragem e ligou, o destino conspirou contra (ou a favor?). A bateria do celular acabou antes que ele escutasse o sim. E, como a coragem já tinha ido embora, preferiu não retornar a ligação. Ficou por isso. Eram presos às convenções sociais, não burlavam as regras. Acomodavam-se com o que tinham e não achavam necessário certos devaneios. Tinham predileção por uma vidinha estável e controlável. Ambos covardes. Era mais fácil manter a pinta de bom moço e boa moça.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Tardes de sol a pino

Quando as tarde de sol mais intenso começavam a despontar seu olhar outrora perdido e demasiadamente cansado passava a apresentar leveza. Sua íris sorria. Depois da íris, o corpo inteiro era embriagado de alegria. A melancolia ia embora e as janelas fechadas se abriam. A brisa anunciava a primavera e a preparava para a estação das flores. A temperatura mais alta, não mais amena, despertava o calor das pessoas. Gostava desse calor. No verão, vestia seu melhor sorriso. Depois do inverno, sua vida era de cores. Antes de acabar o ano já sentia saudade do que ainda nem tinha vivido.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Além da superficialidade ofertada em qualquer esquina.

Carregava consigo certas estranhezas, que o tornavam diferente do resto do mundo. Era assim que se sentia. Uns respeitavam suas escolhas furadas, seus anseios tortos. Outros esfregavam na sua cara tais opções, considerando-as mesquinhas, pequenas demais. Por um tempo o importunaram, insistindo para que mudasse de lado, para que não fugisse à regra. Sentiu-se fraco. Passou. O status que lhe queriam dar não combinava com a sua rotina. Para o dia a dia queria algo além daquela superficialidade ofertada em qualquer esquina.