quinta-feira, 28 de abril de 2011

As chaves


A letra L, o símbolo do Pouca Vogal e um coração deformado pelo tempo ainda acompanham as chaves que me restaram. Duas, só. O chaveiro era mais pesado, até ontem. Tinha a chave para a porta da frente, a chave para porta de vidro, a chave para a outra porta de vidro, a chave para a porta da minha sala e ainda as duas chaves, pequenininhas, do meu armário. Eu senti de ter saído, mas só senti mesmo quando notei meu chaveiro sem graça. Sem as chaves que me abriram tantas portas.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Epílogo

Eu poderia passar todos os dias como o de hoje. Brincaria de vivo e morto, correria atrás de todos a fazer cócegas, apostaria corridas. Eu ganharia umas e perderia outras, para ver, de novo, o sorriso daqueles que me ultrapassaram. Eu poderia ter uma vida inteira assim, no parque. Com o meu sobrinho e um monte de amiguinhos, amizades feitas na hora. De súbito. Eu poderia passar todos os dias como o de hoje. Acreditando que a vida é só: correr, brincar, gargalhar, sorrir, cansar. Para começar tudo outra vez. Correr, brincar, gargalhar, sorrir, cansar.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

As feias que me desculpem...

Mas as bonitas - ou não tão desprivilegiadas assim, como queiram - também sofrem. Porque beleza, antes de por mesa, senta no sofá! Como assim, você trabalha lá? Nossa! Como você conseguiu? Espantam-se aqueles que só vêem a casca. Bonitinha, concluem. Se está ali é porque passou pelo teste do sofá, quiçá até pela cama. Pior mesmo é na entrevista, quando já se insinuam à mulher bonita, apresentando uma súmula dos assédios que virão depois de empregada. Mulher feia não tem isso. Se é feia, a mulher conquista o emprego por um fator simples e intrínseco à mesma: competência. Predicativo que é negado àquelas que, à primeira vista, fazem bem aos olhos. Não parece, mas mulher bonita sofre! Mais do que a feia, que tem alternativas para se fazer mais bem apessoada: uma maquiagem, uma roupa elegante (ou sensual), um salto (ou um sapatinho boneca fofo) e um cabelo bem penteado bastam para que as desprovidas de beleza conquistem seus lugares no pódio. Já às bonitas...O caminho, embora visualmente mais charmoso, é expressivamente tortuoso. A premissa do rosto bonitinho ou do corpo bem desenhado acaba com qualquer outra opção de elogio, de competências atribuídas às moças bonitas. Afinal, moça bonita é bonita. E ponto. É difícil convencer as feias de que mulher bonita não tem namorado, de que mulher bonita pensa! Mais oblíquo ainda é atestar às feias de que as belas não querem marido rico, família de comercial de margarina ou vestido de grife. Tem mulher bonita que detesta que mexam com ela na rua. As feias se assustam, pois muitas almejavam por esse dia. Talvez porque desconheçam o constrangimento de tal ato. Afinal, feia, normalmente, é coitadinha. Moça bonita jamais é coitadinha. Combina mais com soberba. Mesmo quando se está no fundo do poço.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A noite perfeita

Despiu-se. Antes de se vestir novamente tomou uma taça de vinho. Duas, três. Já vestida e ninguém apareceu. Para se distrair ligou a TV, o computador. Deixou que a música tocasse em tom elevado. Sentava-se e se levantava numa frequencia frenética. Ia até a janela, observava o movimento da rua na tentativa de encontrar um automóvel conhecido. Não achava nada, só pessoas indo e vindo pela calçada e uma pilha de carros estranhos. Voltou-se para dentro. Foi olhar-se no espelho, arrumou o cabelo, retocou a maquiagem. Simultaneamente, ela mirava o celular, que não tocava e nem vibrava. Retornou ao computador e no mundo virtual também não tinha nada. Resolveu que iria só esperar, mesmo detestando a espera. Esperou até que, no sofá, pegou no sono. Acordou na madrugada, com a TV sem sinal, o computador em estado de espera e o corpo dolorido. Espreguiçou-se, antes que notasse que a noite não seria perfeita. Só queria ter alguém ao lado, para dizer baixinho o nome dela.

sábado, 16 de abril de 2011

Eu cheguei do show entusiasmadíssima, porque o Duca tinha sorrido para mim. Mostrei o vídeo para todo mundo aqui de casa e para os amigos que vieram. Afinal, eu o tinha visto ao vivo, depois de anos escutando suas músicas, muitas das quais parecem que foram feitas para mim. É assim desde a primeira vez que o escutei. Identifiquei-me de imediato com o trabalho dele. Eu gosto da voz, do ritmo, dos versos. E eu me empolgo quando falo sobre ele. Eu me casaria com ele. Repito isso numa frequência significativa. Eu li o livro dele também. Ele é bom na prosa! Sim, eu sou tiete. Tenho-o pertinho de mim, no porta-retrato ao lado do meu computador. No porta-retrato ele não sorri para mim, mas no vídeo sim. O riso é quase no final da gravação, é quando ele olha para a direção da câmera, balança a cabeça, canta e abre um sorrisinho. É lindo, para mim. Minha mãe já me desiludiu, disse, na primeira vez em que mostrei o vídeo à ela, que é provável que o riso não seja especificadamente para mim. Tá, eu sei. Mas eu estava na terceira fileira do teatro, cantando e gritando o nome dele. E tinha os acenos que eu dava para que ele me notasse. Eu penso que posso achar que o Duca Leindecker sorriu para mim, mesmo que não o tenha feito. É coisa de fã. Por isso tudo então.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Unindo o útil ao agradável

Por favor, devolva meu cachecol.
As cores que eu enxergava.
O amor que lhe devotava e...
Os beijinhos que lhe dava.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

“Surplesa”

A vontade que eu tenho é de lhe congelar, para que não cresça. Para que permaneça eternamente ingênuo e com cheirinho de shampoo do Shrek. Você acalma minha alma quando me pega pela mão, puxando-me, de olhos fechados, até a tal surpresa que você afirma que tem para mim. Geralmente é um doce que você ganhou e quer repartir ou um mimo que lhe deram e você quer apenas mostrar. Mas antes é necessário fechar os olhos, que nem eu faço com você, que repete o meu gesto minuciosamente. Ainda antes de abrir os olhos tem o ‘tãtãtã’, que você profere igualmente ou, às vezes, “tlãtlãtlã”. Você gosta do L! Daí você grita: “Surplesa”, como quem apresenta uma grande descoberta ou a cura para todos os males. Entretanto, é apenas um doce, uma bala, chiclete ou chocolate. Pode ser um tênis novo, o trabalho que fez na escolinha ou um brinquedo. A surpresa definitivamente não importa. O essencial é você. De sorriso largo e uma alegria contagiante. Você que com toda sua doçura partilha de maneira única aquilo que lhe é importante.

domingo, 3 de abril de 2011

Um caso de amor bem resolvido

Quando a solidão assopra meu ouvido, convidando-me a ser a sua parceira, um arrepio súbito me toma e, inevitavelmente, eu lembro de você. Você, entre todos, você! Recordo do mundinho que construímos. Esquecíamos o lá fora, não ligávamos muito para as pessoas que estavam em torno. A gente se dizia casal para eternidade, havia um encaixe em todos os sentidos entre a gente que era inexplicável. Poucos acreditavam em nós, porque o nosso encaixe não era visível aos olhos alheios. Só entre mim e você. Um encaixe que não aguentou tanto tempo quanto esperávamos, devido à nossa expressiva diferença de enxergar o mundo. O bacana é que até no término a gente foi casal. A decisão foi de ambos e simultaneamente. Demasiadamente lógicos, acreditávamos que, mesmo que nos amassemos, o melhor era cada um por si. Na manhã seguinte, quando você saiu pela porta, eu soube que tinha ido para não voltar mais. Contudo, você voltou. E amor requentado não é tão bom, machucou. Despedimo-nos de vez. Não mantivemos contato. Até que você me ligou. É uma conversa quase que mecânica, você me conta o que está fazendo, eu também. Não flui. Então você lembra da gente. A ligação encerra. É breve, mas eu confesso que seus retornos me fazem bem. Eu vibro com cada palavra dita, porque mesmo depois de tanto tempo separados você não se esquece das pequenas singularidades que havia entre a gente. Você afirma que a minha vingança foi perfeita, mesmo sem eu ter pensado em uma. Vingança não é o termo adequado para o nosso desfecho. Simplesmente fomos especiais. Eu para você e você para mim, à nossa maneira. Somos um caso de amor bem resolvido.

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sexta-feira, 1 de abril de 2011

Microconto de caminho torto

Jurava que alinharia seus pés, mas gostava mesmo era de seus tropeços.


Foto: Larissa Bortolli