quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
A história na cara
Quem a encontrava pelas ruas de manhã, mesmo sem a conhecer, sabia da sua viuvez. Acordava cedo para caminhar, mas antes de cuidar da saúde, cuidava do túmulo do marido. Levava flores para o falecido. De vez em quando chorava, porque dava saudade, porque dava solidão.
Daí lembrava da idade, dos anos que viveram juntos, dos filhos, da casa que compraram, do sítio que venderam, dos dois pela primeira vez na praia. Da vida que construíram. As dores passavam. E sentia até orgulho da expressão máxima de sua velhice: as rugas, que escancaravam a sua história.
Porque as rugas, embora assustassem os mais jovens, perto da perda de movimentos, dos cabelos cada vez mais brancos - que ela mesma pintava - e minguados, da memória que insistia em falhar, não eram nada. Nadinha. Pior mesmo era ver os seios tocando seu umbigo. Era difícil, para não dizer impossível, ser sensual na velhice. E, claro, sentia falta de ser mais bonita. Mas essa vontade de ficar mais bonita passava quando ela abria a gaveta de seu criado mudo.
Lá estavam guardadas as fotos, as cartas, bilhetes e cartões postais dos locais que visitou. Tinha quinquilharia também, presentes que ganhou dos amigos. Ao abrir a gaveta, o perfume do seu passado infestava o ambiente, levando-a para uma época boa. Que hoje ela sabe que era boa. Cansou de lembrar e passou a mão no rosto para conter a lágrima que cairia. O movimento a reportou para o presente. Seus dedos sentiram.
As rugas estavam ali, à mostra, impregnadas na sua face. Viver de desgosto nunca foi seu objetivo. Nem sina. Fechou a gaveta e foi para a feira, sentir o cheiro das frutas e verduras. O colorido das maçãs, bananas, pêra, cenoura, pimentão, tomate, alface e berinjela indicava que mesmo com rugas a vida tinha cores. Sabores também. Receberia os filhos, netos e bisnetos para a janta.
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E a janta seria linda, colorida. Não só pelas cores dos legumes, verduras e frutas, mas colorido pelo cheiro da carne de panela que só ela sabia fazer. Colorido pela conversa e gritaria das crianças, que corriam em torno da mesa. Colorida pela cara de satisfação dos filhos em comer a mesma comida que ela sempre fazia. Colorida pelo orgulho que lhe enchia a cada novo elogio. Fosse a ela, fosse à comida. Suas jantas eram sempre coloridas, mesmo que as fotos guardadas nas gavetas fossem preto e branco. Porque a vida dela era colorida. Até mesmo as suas rugas, que marcavam lindamente tudo o que viveu, tudo o que passou, tudo que amou.
ResponderExcluirLindoo, Lari. Você é sempre intensa. Adorei.