quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Cheirosinho

O vento intrometido passou pela fresta da janela e fez arrepiar os poucos cabelos que lhe restaram. Estava sentado na poltrona da sala cheia de filhos, netos e bisnetos, quando o vento, além de movimentar os fios de cabelos, levou sua fragrância a quem estava por perto. Mas antes mesmo da brisa, a família já tinha percebido o perfume. Elogiaram. Ele, tímido e ainda sem jeito, agradeceu com um riso sem graça.
Há anos não usava uma colônia e por isso as borrifadas que deu sobre o pescoço deixavam-no, embora cheiroso, desconfortável. Por um momento até achou que tivesse escutado um espirro, mas não. Ninguém espirrou. Queria mesmo era ter escutado um espirro, daqueles bem fininhos, curtinhos. Atchim! Era assim que a esposa reagiria. E escutar um espirro que não existiu o reportou para o primeiro encontro, quando pôde chegar pertinho dela.
Ela, de uma beleza singular. De nariz arrebitado, que rimava com o resto do rosto perfeitamente emoldurado pelos cabelos negros ondulados que lhe caíam até a altura dos ombros. Seduzido, quis chegar mais perto ainda da moça que não o deixava mais dormir. E foi por chegar mais perto e querê-la por perto que abandonou o uso de colônias. Ela era alérgica a qualquer cheiro, dos cítricos aos doces, dos amadeirados aos florais.
Não teve outro jeito se não abandonar os frascos, até o mais minúsculo que, à época, custou-lhe quase todas as suas economias de um ano. Se hoje estava perfumado, era porque a mulher não estava mais ao seu lado. Até que a morte os separe. Foi só assim que ficou longe da amada. No dia seguinte, deixou a fragrância de lado para não escutar espirros.

sábado, 6 de agosto de 2011

A fruta nunca cai longe do pé

Eu tão dona da razão, você tão dona do coração. Eu, um vulcão em erupção. Você, um mar sem onda. Você, a paciência que nunca tive. Eu, o imediatismo (aquela coisa de sem rodeios e de preferência já – agora) que você dispensa. Será efeito de nossas épocas? Pois é, até nisso a gente não combina. Nossa diferença de quase 30 anos de idade colabora para que pensemos de maneira tão oposta. E nessa coisa de sermos tão avessas, a gente se preocupa demasiadamente. Eu com você e você comigo. Você questiona as minhas escolhas, eu não entendo as suas. Daí que a gente se preocupa, que a gente coça a cabeça, coloca a mão no queixo. Depois desses movimentos de quem busca comprensão, o silêncio. Uma olha para outra. Você tenta se encontrar em mim e eu em você. Alguma coisa temos em comum. Temos de ter! Mas a gente ainda não achou essa parte em comum. A semelhança externa a gente vê todo dia. Eu vejo você no espelho e você me vê no seu espelho. Quiçá seja isso. Eu uma parte adormecida de você, aquilo que você nunca foi por algum motivo. E você uma parte do que eu ainda vou ser, por algum motivo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Microcrônica de comercial de margarida

Todo mundo em volta da mesa e ele me diz, sussurrando, como quem conta um segredo, escondendo a boca com as mãos: “Pirata”. Era para passar para frente. Passo para meu avô, que passa para a minha mãe, que passa para minha cunhada. “Cadê meu pai?” (Está se arrumando para aula). Telefone sem fio. Entre uma mordida no pão francês e o gole do café, a gente sussurra as palavras dele no ouvido do outro. Elefante, Pipoca, Carrinho, Huck. O café de fim de tarde e quase noite, a nossa janta, fica com gosto de filme de final feliz*.

*É, eu sei. Sou tia babona.