segunda-feira, 24 de maio de 2010

Baseado em fatos surreais

De volta à cidade grande, resolveu, apenas por curiosidade, pois não havia necessidade de pegar o metrô, passar pela escada da estação de onde tinha visto a velha albina. Lá estava ela com os cabelos, talvez, um pouco maior do que da primeira vez que a avistou. Só os cabelos mudaram, mesmo que permanecessem ralos. As mesmas roupas, o mesmo semblante, o mesmo olhar distante e intacto continuavam nela.
Ainda parecia estátua, não tão macabra como antes. A gente se acostuma com o que vê todo dia, por isso a idosa insana já não lhe causava tanto estranhamento. A figura da velha se reconstituía em sua mente, até acreditou que os predicativos que atribuía a ela eram sacanas demais. Velha, macabra, insana. A mulher vivida com as experiências tatuadas pelo corpo que carecia de cor, de carne, de brilho, talvez não fosse nada daquilo que pensara.
Um amigo lhe deu a dica. Falou que ela poderia ser como a moça da canção mexicana. Cogitou a ideia. Quiçá realmente assim fosse. A velha no tempo em que não tinha tantos anos assim conheceu um moço pelo qual se apaixonou e formaram a 1ª pessoa do plural. Ele gostava dela não ter melanina nenhuma, achava charmoso aquela branquidão toda que aliada ao seu jeito sem jeito ficava até sensual.
Durou um verão, quase que foi para o inverno, mas o rapaz teve que partir (ou mesmo fugir). Ele disse que retornava, que sua ausência duraria uma semana, uma e meia, no máximo. Ela prometeu que durante a espera, todo dia iria à praça, em frente da igreja principal, o local do primeiro beijo do casal, onde se colocaria a pensar nele, nos dois. A moça achou bonita a promessa e a cumpriu.
Cumpriu para a toda a vida. Passou dias a espera do seu homem que sempre tardava a chegar. Passou uma semana, uma semana e meia, três meses, um ano. Vários anos. A cidade cresceu, a igreja foi cercada, passou por inúmeras restaurações e ninguém mais reza lá. Só visita. A praça virou lugar de gente de tudo quanto é tipo, por ali passa todo mundo o dia todo a toda hora. Tem bar, lanchonete, comércio, ambulantes, entrada e saída de metrô. Não é mais praça.
É na saída do metrô que ela se posta. Bêbada de amor jamais saiu dali, era ali o local do primeiro beijo. Tudo havia mudado, mas ela sabia que era ali, pois acompanhou todas as reformas. E como tinha prometido voltava ao local. Até que chegou o tempo que não mais saiu dali.
Fica que nem estátua, olhando para o nada. Ainda espera que aconteça algo, que o moço volte. A vizinhança diz que era bonita, mesmo sem cor. Que sorria fácil, pensava ligeiro. Aos poucos ficou gagá, garantem. Agora pensa lento, quando pensa.
Sem querer,em seus devaneios, acabou construindo a história da velha albina. Achou que um tanto de amor, de ilusão, dessas coisas que todo mundo acha graça, amenizaria o presente da velha, da qual ninguém sabe o passado, mas que é fácil imaginar o futuro. Resolveu andar de metrô, passear um pouco pela metrópole.

4 comentários:

  1. Lari...parabéns por entrelaçar duas histórias com tanta sutileza. Unir um cais panamenho e uma praça fluminense num conto triste e belo ao mesmo tempo, não parece ser fácil, mas você conseguiu.
    Mande as saudações cabíveis ao seu amigo que lhe deu a dica.

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  2. Amei, Lari. E que perspicaz a constatação! ;)

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  3. Ela acaricia as palavras como quem cuida da sua mais valiosa coleção de selos. Ela amarra as ideias como quem entende uma velha albina que vive isolada num mundo pateticamente particular. Ela entende porque vive. E vive, pois compreende.

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  4. Olá, Lari! Tudo bem?! Depois de muito relutar, cliquei no link do seu MSN e cai aqui. Faz um tempo já, mas nunca comentei.rsrsrs Muito bom seu blog. Gostei mesmo. Beijos. Dudu.

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Porque quem comunica se trumbica.