domingo, 3 de julho de 2011

O chá quente na Rua da Dúvida com a Avenida da Instabilidade, na esquina da Intensidade

Foi na Rua da Dúvida com a Avenida da Instabilidade que ela resolveu morar. Fez a mudança há pouco tempo, depois de certa maturidade e independência. Não sentiu de partir da casa de onde tinha nascido e crescido, já que o caminho que trilhava acabava sempre no cruzamento entre a Dúvida e a Instabilidade, na esquina da Intensidade. Era seu destino aquelas ruas, aquela esquina. Quem não gostou muito da mudança foi sua mãe, que vislumbrava um futuro diferente para a filha. Algo não tão oblíquo como a menina escolheu. Menina que nem era mais menina. Mulher, a quem a mãe lançava olhares confusos, como quem tenta compreender aquelas escolhas, aqueles passos descompassados. Ela, a filha, fingia naturalidade. Não queria discutir com a mãe essas coisas de escolhas. A gente é aquilo que escolhemos, era o que repetia sempre. E ela tinha escolhido aquelas ruas, aquela esquina. No dia da mudança, enquanto desconhecidos montavam seus móveis comprados em lojas de usados, por opção, ela organizava as caixas que continham um tanto de sua vida. A minha vida dentro de caixas, pensava. Foi numa caixa de sapato fora de moda que ela se encontrou. Entre fotos antigas, cartas recebidas, cartões não enviados e objetos não identificados, o cheiro do passado bem vivido. A foto do primeiro namorado, ainda na adolescência, fez com que ela recordasse da primeira vez que jurou amar de verdade. Riu sozinha apalpando aquelas fotografias. Diferentemente das amigas que perderam a virgindade com um cara na faculdade, ela tinha ido para a cama antes. Com o namoradinho da cidade onde morava. A primeira vez dos dois. Uma primeira vez amontoada, estranha. Gozada – nos dois sentidos! Gargalhou e passou para as cartas recebidas. Tinha carta com inúmeros remetentes. De amores mal resolvidos às amizades vencidas. Cada briga besta! Nomes que quase nem lembrava. Tinha gente que não sabia por qual motivo tinha sido tão próxima. E outras que não compreendia a distância estabelecida. Deu saudade. Releu os cartões não enviados. Ufa! Ainda bem que não enviou. Aproveitou e se desfez dos cartões. Um deles reaproveitou. Com precisão transformou o O em A e assim por diante. Não parecia que tinha escrito por cima, por isso daria a um amigo. O cartão agora combinava com ele, não a quem um dia se destinou. Os objetos não identificados perturbaram sua mente. Por que ela guardou um brinco sem par que nunca foi seu? Uma caneta feia e sem tinta, um chaveiro estragado, um isqueiro com cara de que custou caro mas não pagou, um porta-retrato quebrado, um santo sem cabeça, uma xícara sem asa, um MP3 ultrapassado? Preferiu continuar arquivando tais objetos, mesmo uns sem lembranças. Ao passar para a próxima caixa é que notou a chegada da noite e a solidão no novo endereço. Os desconhecidos já tinham montado os móveis e ido embora. Sobrou ela. Com seus pertences. Olhou lentamente ao redor, mirando cada detalhe daquele apartamento de um cômodo só. Sentiu orgulho de si. O imóvel era alugado, mas ela tinha bons amigos, uma profissão e um amor para chamar de seu que a visitaria no fim de semana, quando ele retornasse da viagem que fez a trabalho. Prometeu a ela um cachecol. E ela aguardava ansiosamente o cachecol e os beijos que viriam juntos. Ligou para a mãe, chamou-a para um chá quente. Era o que podia oferecer no meio daquela bagunça. Decidiu que durante o chá explicaria suas escolhas. Antes foi conferir se havia gás suficiente para a fervura da água.

Um comentário:

  1. Lindo, Lari. E que a mãe possa entender as escolhas da filha, mesmo que não concorde com elas. E que as duas, cada qual na sua, sejam sempre felizes. Em qualquer rua ou avenida. ;)

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Porque quem comunica se trumbica.