domingo, 22 de maio de 2011

Da ingratidão do tempo

Essa coisa de fazer anos a cada 365 dias sempre me incomodou. E nem é por causa dos números a mais na idade. É que aniversários sempre me lembram que fiz pouco ou quase nada do que eu pretendia ou pretendo. Então, um medo de não fazer tudo aquilo que gostaria me consome. Um medo que nada tem a ver com o envelhecimento. Sabe, até acho bacana isso, de se ter mais experiência, de se ter mais narrativas em primeira pessoa. Enredos e personagens variados entrelaçados pela protagonista: Eu! Viu? Eu não tenho medo de ficar velha, de ser chamada de vozinha. Mas quando eu deitei ao seu lado a fim de apenas observá-la, apavorei-me. E nem foi pela nitidez de suas rugas expostas pelo sol que entrava pela fresta da janela. Foi porque eu me dei conta de que envelhecer pode não ser tão bom. Acho que é também porque nunca a imaginei assim. Irreconhecível! Sua transformação me assusta. As palavras viril e perspicaz que andavam coladas em você deram espaço para vocábulos poucos atraentes. A senhora agora carrega a fragilidade. Já não tem precisão de nada. De você, que eu conhecia, ficou pouco. Restou-lhe a teimosia (como pode ser tão birrenta?) e um tanto de vaidade. Os poucos cabelos que sobraram são brancos. Você se irrita com os cabelos brancos. Por isso os escondeu por tanto tempo e os esconderia de novo, caso pudesse. E mais irritada você fica com a tremedeira de uma de suas mãos ao levar o copo de água até a boca. Eu também me irritaria, confesso. E eu me irrito também por você, porque eu me lembro de suas mãos a obedecendo. Foi através delas que a gente se comunicou. A gente trocou cartas dos meus doze anos até o meu último ano da faculdade. Não sei o porquê que a gente parou com as cartas...Eu guardo todas! E quando sua memória falha, eu conto as histórias que a senhora me contava. A que eu mais gostava - e gosto - é aquela em que você mordia a perna do meu irmão, que tinha um aninho ou talvez um pouco mais. Mordeu porque ele vivia me mordendo, aos dois anos ou um pouco mais eu tinha as pernas cheias de mordidas. Quando você o avistou me mordendo, correu e mordeu ele também. Que nunca mais me mordeu! Tá, eu achava a história bizarra. Hoje eu acho graça. Acho que o gesto combina demais com você. Geniosa. Enquanto a fito do meu lado, em sono profundo, eu fico pensando nisso. Em você que agora olha para o infinito, que está tão fraquinha. Admito que fico do seu lado na esperança de que aconteça um encontro entre a gente de novo. Entre mim e você, entre você e o mundo. Entre você e você mesma. É tenebroso saber que a vida é feita desses encontros, desencontros e reencontros. É apavorante constatar que o tempo é voraz demais. O que o tempo não havia feito com a senhora em quase 70 anos fez agora. Em menos de seis meses. O tempo nem sempre dá tempo para a gente.

5 comentários:

  1. É tão difícil saber que tanta inspiração te machuca. Se eu pudesse, te pouparia de tudo isso. Resta viver...

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  2. A gente costuma se esquecer do quanto a vida é frágil, por mais dura que pareça a carapaça. E o tempo realmente é cruel, minha amiga. Lindo, incrivelmente você. E me dói não poder fazer nada que te ajude...

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  3. De repente, sem querer querendo, achei um texto que "me entende". A semelhança das experiências vividas antes e vivas agora é incrível. Belo texto Larissa. Parabéns e Obrigada.

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Porque quem comunica se trumbica.